Resumo

Preâmbulo

Lista de Figuras

Lista de Siglas

Introdução

Primeira Parte: A fronteira
e a Comunicação

1 Caracterização
do Objeto de Pesquisa

1.1 Identidades
e Espaços de Fronteira

1.2 Cultura, ideologia
e meios de comunicação


2 Contextos de Inserção
do Objeto da Pesquisa

2.1 Fronteiras Vivas
2.2 Pólos de Integração
2.3 Caracterização Geral
2.4 Jornalismo e Mídia
Impressa


3 Abordagem Metodológica
3.1 Táticas de
Aproximação do Objeto

3.2 Passos Concretos

4 Vozes sobre as Relações
na Fronteira

4.1 Uruguaiana-Libres
4.2 Santana do
Livramento-Rivera

4.3 Comparando os
Dois Espaços


5 Caracterização dos Jornais
5.1 Jornais de Uruguaiana-
Libres

5.2 Jornais de Livramento-
Rivera


Segunda Parte: A fronteira
na mídia local impressa


6 Análise dos Textos
Selecionados

6.1 A Fronteira
6.1.1 Preliminar: diferentes
usos da expressão fronteira

6.1.2 Fronteira como
amálgama cultural

6.1.3 Fronteira como
transcendência do local

6.2 O fronteiriço
6.2.1 Nós, ou brasileiros ou
argentinos ou uruguaios

6.2.2 Nós todos
6.2.3 Nós, da região
fronteiriça ampliada

6.2.4 Nós, semelhantes
implícitos


Conclusões

Anexos

Referências




3 Abordagem Metodológica


O trabalho investigativo no âmbito da pesquisa social solicita empenho e atenção especial, já que aborda uma realidade na qual o próprio pesquisador é agente. É uma construção artesanal onde dados quantitativos e qualitativos são mesclados, tornando-se complementares. Aspectos significativos da realidade são destacados do todo e analisados, em busca de interconexões sistemáticas entre eles, de forma a possibilitar a compreensão da dinâmica das relações sociais. O campo empírico escolhido para a realização do trabalho de observação, fronteira entre Brasil-Argentina e Brasil-Uruguai, consiste em um recorte espacial, palco de manifestações de intersubjetividades e interações entre pesquisador e grupos estudados.

Quando o trabalho de pesquisa é feito em um contexto que não é o da vivência cotidiana do pesquisador, são exigidos cuidados no sentido de desvendar, em um primeiro momento, que contexto é este, que situações lhe são peculiares, quais são os principais atores sociais, com que olhos estes atores se vêem e que olhares lançam aos demais. No caso específico há que se buscar decifrar o que representa a fronteira para o habitante do lugar: que distinções faz entre o local e o internacional; quem é entendido como estrangeiro, aquele que habita o outro lado da rua ou da ponte, o mesmo que circula normalmente pelas ruas e pelas praças da cidade, mas mora lá, aquele cujos pais e irmãos residem aqui, aquele que trabalha lá mas é daqui; qual a linguagem, que jargões são comuns a ambos e possibilitam o estabelecimento de um diálogo permanente, troca de experiências e vivências semelhantes. Enfim, as mesclas e os atravessamentos são tantos que, para entendê-los, é necessário criar caminhos próprios que atendam as interrogações propostas.

Após as investidas iniciais, de reconhecimento, é que se torna possível dirigir o estudo para o tema comunicação de fronteira, que levou o pesquisador a elegê-lo como de relevância para si, para a ciência e para os outros. Trata-se de analisar como a fronteira comparece na configuração dos jornais locais, de entender como este elemento interfere nas práticas sociais desenvolvidas nos espaços de Uruguaiana-Libres e de Livramento-Rivera.

Ao estabelecer contato direto com o fenômeno analisado, para obter informações sobre a realidade dos atores sociais no seu próprio ambiente, o pesquisador inaugura uma relação face a face, que pode, ao mesmo tempo, modificar e ser modificada pelos elementos ali presentes. Em determinados momentos, há a participação plena do pesquisador, em outros torna-se fundamental o distanciamento total da vida do grupo. O que ocorre é que o processo de realização do trabalho de campo leva à reformulação dos caminhos da pesquisa através da descoberta de novas pistas, fruto de um momento relacional e prático.

Os questionamentos e as inquietações que levam à feitura de uma pesquisa nascem no universo cotidiano. Assim, ao mesmo tempo em se dá a coleta de dados, a análise já está sendo elaborada. E, por isso, o resultado final do estudo, por mais singular que seja, deve ser visto como provisório e aproximativo.

Dentre os elementos que participam dos processos de comunicação locais, encontra-se a mídia impressa, isto é, os jornais produzidos (e lidos) no espaço fronteiriço. É neste ponto que reside a particularidade da proposta. Em um mundo globalizado, as práticas comunicacionais são cada vez mais diversificadas. Os contatos interpessoais permanecem vivos e fortes, mas são cada vez mais permeados pelas possibilidades que as inovações tecnológicas oferecem, gerando novas formas de socialização mediadas pelos veículos de comunicação.

Nesta esfera, as relações se dão no e através do entrelaçamento dos campos sociais, distintos e variáveis de acordo com o contexto onde se inserem. Sendo assim, um espaço de divisa entre países e de contato entre povos distintos configura-se em peculiar, trazendo consigo especificidades dignas de análise.

Nossas passagens percorrem pontos como o contexto sócio-histórico das comunidades selecionadas para o estudo, a estrutura das empresas jornalísticas, com suas mecânicas internas por elas mesmo definidas, bem como a produção da notícia. Mas o foco situa-se nos textos da mídia impressa local e o que eles são capazes de mobilizar no tecido social. Elementos como fonte, editor e público receptor foram considerados no intuito de entender a comunicação como um processo que tem seu ponto de partida, seu meio de transmissão e seu ponto de chegada.

Entretanto, nosso posicionamento se baseia no aspecto de que este circuito não é fechado, as trocas são constantes - interna e externamente - e o processo é dinâmico36. Sempre existiu a preocupação de contextualizar a análise, pois os elementos destacados para a interpretação estão incrustados em um ambiente complexo. Para tal exercício recorremos à Hermenêutica de Profundidade, defendida por John B. Thompson (1995), que, pela abrangência que propõe, indica o chamamento de outros referenciais que poderão, de modo conectado, levar a um exercício mais completo de observação e de análise interpretativa.

Como trabalhamos com as formas de representação e junção estabelecidas pelos grupos que compõem a comunidade local, definimos a etnometodologia como uma alternativa de encaminhamento, com vistas a tratar a convivência na fronteira a partir dos posicionamentos adotados e assumidos pelos habitantes das terras em que o Brasil possui limites geográficos com a Argentina e com o Uruguai. Adotamos também algumas perspectivas da pesquisa participante, que propõe um modo como o pesquisador deve se projetar, ingressando no grupo a ser pesquisado. O acionamento destas formas de atuação se deu por entendermos que eram adequadas à realização do trabalho, e foi, através dos pontos por elas defendidos e pelos passos por elas sugeridos, que o exercício tornou-se viável, fazendo com que o pesquisador conseguisse ingressar no ambiente, de modo a compreender os mecanismos acionados e as relações firmadas pelos grupos para garantir um convívio harmonioso nos espaços de fronteira.

Este tipo de postura acionou a possibilidade de interação do grupo com o pesquisador e vice-versa, propiciando, como era de se esperar, influências recíprocas tanto nas atividades de pesquisa como na própria vida da comunidade no sentido de refletir sobre a sua condição fronteiriça.

A pesquisa traz na sua estrutura alguns elementos adotados no estudo de caso, mas não se limita aos instrumentos sugeridos por essa dinâmica. Por sua vez, também não pretende ser nem um estudo exclusivo da produção da notícia, nem uma análise dos discursos, ou uma análise da recepção. A idéia é de compor uma matriz que dê conta das situações encontradas, construída a partir do surgimento das questões mais marcantes. Nossa pretensão é, justamente, poder definir o quadro como um todo, para verificar as amarras que ficam estabelecidas nos processos comunicacionais, levando em conta os elementos envolvidos nesse processo em um espaço de fronteiras geopolíticas, de modo a interpretar como a existência do fenômeno fronteira se faz sentir nas relações locais e se apresenta nos textos impressos dos jornais das cidades escolhidas para compor o estudo.

Acreditamos que este trabalho pode contribuir com iniciativas que vislumbrem o rompimento de marcos divisórios, dirigidas para além dos acordos econômicos e das questões que envolvem o mercado. A presença da fronteira - e de todas as ações e reações que provoca - se percebida e compreendida como peculiar, pode tornar-se referência no sentido de levar a uma concepção correta do que venha a ser um verdadeiro processo integracionista que aponte para o enriquecimento do homem, vendo-o como ponto principal e não apenas como mera peça de uma engrenagem.

Nossa proposta está direcionada a avaliar fatos e ações, passando pela cultura, pela ideologia e pelos meios de comunicação, que derrubam barreiras e constroem passagens, definidas a partir de mecanismos, estratégias e táticas indispensáveis para a sobrevivência em espaços distantes dos centros de poder nacionais. Espaços estes onde as trocas são realizadas entre um eu e um outro distinto por um lado, mas com características semelhantes que os aproximam.

* * *

O ponto de partida foi a identificação do contexto social e histórico ali estruturado, passando para as formas simbólicas instituídas nas relações estabelecidas no espaço fronteiriço, que definem as simetrias e assimetrias entre os membros da comunidade, membros estes pertencentes principalmente às nações brasileira, argentina e uruguaia. Passamos pela identificação de marcas definidas como específicas dos habitantes locais e algumas manifestações próprias dos grupos que habitam as bordas dos países abordados no estudo.

Através do exercício de observação e análise foi possível detectar como se dão as trocas, os intercâmbios e que mediações ocorrem no estabelecimento dos processos ali presentes. Foram vários os questionamentos, pois são muitos os itens imbricados e, para respondê-los, foi fundamental gestionar uma série de mecanismos capazes de dar conta das questões apresentadas.

Temos claro que cada investigador, ao definir os métodos e metodologias empregados, define suas amarras, seus enquadramentos que possibilitam chegar a respostas satisfatórias. É de sua responsabilidade armar uma estrutura capaz de alcançar resultados, objetivos e metas, consciente de que para realizar o investimento é fundamental estabelecer recortes, selecionando elementos de crucial importância e não esquecendo que: "Toda la experiencia del conocimiento del mundo humano es un ejercicio de sentido. El camino de esa experiencia es el método; la reflexión sobre el camino, la metodología" (CÁCERES, 1997, p. 26).

Recorremos pois à Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por J. B. Thompson (1995), para definir um referencial teórico e metodológico que pudesse embasar nossa investigação. O emprego de tal proposta serviu como lastro para a composição de uma metodologia adequada que desse conta da análise das relações fronteiriças e seus reflexos na mídia impressa local. Nossa intenção foi de compreender como o fenômeno fronteira é estampado nos textos que compõem os principais jornais locais e que movimentos podem ser estimulados (ou relegados) através dos sentimentos e sentidos que estes textos podem mobilizar no leitor, o habitante fronteiriço.

Portanto, a definição dos caminhos e dos instrumentos de análise foram balizados pela HP que propõe a análise das formas simbólicas, vendo o objeto de análise como uma construção simbólica significativa, que exige interpretação. Para tanto, fica reservado um papel de destaque ao processo de interpretação, pois, deste modo, pode-se destacar o caráter distintivo do campo-objeto, já que este é um campo que, por ser constituído de sentido, exige interpretação.

Como as formas simbólicas estão inseridas em contextos sociais e históricos de diferentes tipos e, sendo estes construções simbólicas significativas, estão internamente estruturadas de diversas maneiras. A Hermenêutica de Profundidade apresenta uma perspectiva dentro da qual vários métodos de análise podem (e devem) ser sistematicamente interrelacionados, suas potencialidades podem ser consideradas e os seus limites definidos.

A discussão desta metodologia inicia-se com uma observação preliminar fundamental, lembrando que o objeto de nossas investigações é um campo pré-interpretado. E, por isso, deve-se aceitar e levar em consideração as maneiras como as formas simbólicas são interpretadas pelos sujeitos que constituem o campo subjetivo e objetivo. Sendo assim, o ponto de partida é a hermenêutica da vida cotidiana, ou da doxa, e o objetivo da análise é reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação/transmissão e recepção das formas simbólicas.

Por outro lado, devemos lembrar que um analista social que busque interpretar uma forma simbólica estará analisando, talvez, um objeto que pode ser ele mesmo uma interpretação e, por sua vez, já pode ter sido interpretado pelos sujeitos responsáveis pela construção do campo-objeto, do qual a forma simbólica é parte integrante. É neste sentido que os analistas sociais podem realizar uma re-interpretação.

Através da HP, ressalta-se que o campo-objeto constitui-se também em um campo-sujeito e os sujeitos que constituem este campo-sujeito-objeto são, da mesma forma que os analistas sociais, sujeitos capazes de compreender, refletir e agir baseados nessa compreensão e reflexão.

Outra questão que não pode ser esquecida é a de que os sujeitos, elementos constitutivos do mundo social, estão inseridos em tradições históricas, isto é, fazem parte da história, por isso não podem ser apenas classificados como observadores. Além disto, pode-se dizer que os homens constroem o presente baseados nos aspectos do passado e que podem, em muitos casos, servir para mascarar este presente.

É importante ir além da doxa e penetrar mais a fundo na interpretação do fato social. Isso é feito com as três fases interligadas. A primeira, análise sócio-histórica constituída por situações espaço-temporais, campos de interação, instituições sociais, estruturas sociais e meios técnicos de transmissão. A segunda fase, denominada de análise das formas ou discursiva, é proposta através de diversos encaminhamentos como a análise semiótica, da conversação, análise sintática, narrativa e análise argumentativa, entre outras. A interpretação/ re-interpretação é considerada a terceira e última fase (THOMPSON, 1995, p. 353-421).

De acordo com a Hermenêutica da Profundidade, ao se discutir a comunicação, deve-se ter presente a importância de distinguir entre três enfoques, que são: a produção ou construção, a transmissão e a recepção. A ruptura entre produção e recepção é identificada como uma ruptura estruturada, em que os produtores de formas simbólicas, embora dependentes, até certo ponto, de receptores para a valorização das formas simbólicas, são institucionalmente instruídos e obrigados a produzir formas simbólicas. Nos dias de hoje, mais do que nunca, a preocupação em dar atenção a todas as etapas do processo comunicativo é uma constante.

Partindo do posicionamento sugerido por Thompson, podemos nos aproximar das formas simbólicas mediadas pelos meios de comunicação de massa - cujo fluxo comunicacional dá-se majoritariamente em um único sentido - distinguindo três aspectos, ou campos objetivos, denominados de enfoque tríplice.

A idéia de que os receptores de mensagens são espectadores passivos é errônea e não passa de uma avaliação míope que não corresponde ao caráter real da apropriação, como um processo contínuo de interpretação e incorporação. O mito do receptor passivo anda junto com o engano do internalismo, é o equivalente metodológico, do lado da recepção-apropriação, da falsa tentativa de inferir às conseqüências das mensagens apenas à estrutura e conteúdo das mesmas, já que o objeto por si só não mobiliza sentido.

O enfoque metodológico apresentado permite-nos ver como o conceito de ideologia pode desempenhar um papel, ainda que restrito e cuidadosamente definido, dentro de uma teoria social fundamentada na hermenêutica e orientada para a crítica, isto é, para a auto-reflexão crítica das pessoas que formam o mundo sócio-histórico.

Como a proposta da HP é bastante densa, a intenção é utilizá-la como baliza, acionando elementos que aproximem o estudo das propostas por ela sugeridas. Entende-se, entretanto, que o exercício se configura mais como um estudo de amplitude do que de profundidade, pois devido à limitação de tempo disponível para realização do estudo e na medida em que muitos elementos são trazidos para compor o quadro analítico, fica difícil realizar um trabalho capaz de dar aprofundamento a todos eles. O que é possível fazer, e de acordo com os indicativos da HP, é ter consciência dos fatores que estão presentes nas práticas sociais, influenciando e/ou fazendo parte dos processos comunicativos, e principalmente o midiático, buscando construir um mecanismo capaz de identificar as partes e compreender o conjunto.

A estrutura básica da HP funcionou efetivamente como um alicerce para a elaboração do quadro de análise. Cabe ressaltar que os passos sugeridos, bem como o exercício de re-interpretação, foram realizados, mas entendemos que a profundidade proposta deve estar atrelada às exigências do momento em que o trabalho é desenvolvido e às condições de sua elaboração. Sendo assim, passamos a empregá-la de modo que fosse possível se chegar a uma interpretação de abrangência, na medida em que recorremos a várias técnicas e instrumentos, possibilitando agrupar diversas informações que ofereceram dados concretos, permitindo que se chegasse a resultados satisfatórios sobre as práticas e os processos comunicacionais fronteiriços.

Como suporte para esta construção, o estudo baseia-se também nas articulações formuladas por Gonzales (1994). O autor propõe um "Modelo de Integração Hermenêutica Profunda", onde o valor simbólico que está em jogo não é somente do tipo intra ou inter, mas profundamente trans-objectual. Usando a informação diferenciada por níveis e escalas, tem-se a possibilidade de interpretar cada área assim como suas relações possíveis: produção-leitura, produção-texto, leitura-produção, leitura-texto, texto-produção, texto-leitura e assim sucessivamente, estabelecendo cadeias entre pares até obter um modelo geral das relações lógicas e um modelo particular das relações construídas, ambos necessariamente tridimensionais em virtude da trajetória diversificada de seus elementos. Conforme o autor:

Es importante señalar que el estado que representa nuestro modelo es siempre la resultante de uno o varios procesos históricos. Por lo tanto, debe ser representado al menos de manera tridimensional en cada una de sus relaciones. Dada la envergadura del trabajo realizado, resulta muy importante el modo de tratamiento sintético e integral de nuestro observables y hechos construidos (GONZALES, 1994, p. 276-278).

As proposições, apresentadas acima, contribuem no sentido de auxiliar na criação de estratégias próprias ao estudo que definem o cruzamento de dados e informações levando-nos a uma leitura transversal das falas, dos textos e das ações dos elementos que compõem as comunidades fronteiriças.

Para operacionalizar o estudo, e acreditando que a pesquisa social tem seu lugar de relevância dentro das ciências, desenvolvemos um processo de investigação calcado em métodos específicos de modo a formular novos conhecimentos que venham auxiliar na compreensão do tecido social local.

Partimos da reconstrução do locus da pesquisa, passando pela descrição sociocomunicacional/ cultural dos padrões de interação das comunidades envolvidas no processo investigativo. Vale destacar que este estudo está vinculado à questão da territorialidade nos espaços de divisa entre os países do Extremo Sul da América Latina, onde é verificada a existência de fronteiras geopolíticas, ultrapassadas por remanejos instituídos pelas comunidades locais, onde a comunicação tem papel fundamental.

Os aspectos que envolvem os acordos estabelecidos entre os governos parceiros do Cone Sul, hoje entendido como MERCOSUL, não receberam destaque específico embora sejam relevantes, pois atingem os espaços selecionados e auxiliam na verificação de processos marginais estabelecidos pelas comunidades da fronteira, que burlam os limites e as normas firmadas oficialmente, contrabandeando (prática tão comum às regiões fronteiriças) informações e definindo parcerias. Enfim, estes elementos vão contribuir para a análise das articulações integrativas ou segmentárias ou de tensão que compõem as relações das regiões destacadas. Para que a proposta se viabilizasse, lançamos mão de técnicas e de instrumentos que, ao serem acionados, possibilitaram que a empreitada se concretizasse.

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3.1 Táticas de aproximação do objeto

Prosseguindo em nossa trajetória, e dando suporte ao que ficou definido anteriormente, recorremos a autores e teorias que colaboraram no sentido de auxiliar na implementação da pesquisa. Por ser um estudo empírico, passamos pelo que aponta a etnometodologia, abordando atividades, circunstâncias e raciocínio sociológico práticos, mantendo especial atenção aos acontecimentos do dia-a-dia de grupos específicos. Ou como conceitua Coulon: "é a pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e, ao mesmo tempo, realizar as suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar" (1995, p. 30).

Partindo do princípio de que o mundo é constituído de normas, realizamos um exercício na tentativa de compreender como os indivíduos que compõem os grupos da fronteira interiorizam as normas ali vigentes, buscando verificar em que medida estes sujeitos têm consciência dos processos que acionam para internalizar essas normas.

A perspectiva do pesquisador, via um método, é compreender os procedimentos e percursos que cada um realiza, construindo o seu processo de produzir sentido. Tendo em vista que todo fenômeno de atribuição de significado que o sujeito realiza passa por um trabalho cognitivo e metodológico, produzir sentido impõe um processo cujas faces nem sempre são conhecidas pelo sujeito, advindo de uma ignorância do saber: pulsões de palavras, políticas, apontando para o problema da significação, nomeação das coisas e compreensão do outro.

Entendemos que a comunidade fronteiriça é distinta e que, para compreendê-la, precisávamos tirar o véu que encobre sua realidade, descobrindo o que é acionado pelos grupos do lugar para resolver suas questões práticas. Buscou-se compreender como os indivíduos que ali habitam vêem, descrevem e propõem, em conjunto, uma definição do fenômeno fronteira, encontrando alternativas que tornem o convívio com a diferença algo possível.

O estudo não é um trabalho de campo etnográfico, mas a reflexividade inerente ao trabalho de campo é o processo de interação. E para detectar os sentidos da reciprocidade da relação tornou-se importante analisar cuidadosamente os termos da interação com informantes e o sentido que estes dão ao encontro. O sentido da vida social se expressa particularmente através de discursos que emergem constantemente na vida diária, de maneira informal, por comentários, anedotas, termos de tratamento e conversações (GUBER, 2001, p. 75), por isso a importância da entrada do pesquisador no grupo.

Assim sendo, podemos dizer que a forma para proceder o levantamento de dados necessários à construção do quadro a ser analisado, sofreu influência das técnicas da pesquisa participante. Isso se deu para que fosse possível penetrar no meio, pois a reflexão do que venha a ser o fenômeno fronteira para os habitantes daqueles espaços se dá de modo complexo tanto nos discursos como nas práticas sociais. A base é a vivência, e a partir dela é viável construir uma referência de internacionalidade, verificando quais os métodos e as práticas instituídas pelas pessoas para lidar com a situação ali vivida. E a mídia, no caso os jornais impressos locais, traz e faz parte do fenômeno, da edificação deste.

Neste sentido, a pesquisa participante permitiu ir além das palavras e dos depoimentos colhidos e entrar num mundo peculiar, onde o conjunto das formas de expressão permite a realização de uma leitura mais fiel do contexto e das relações interpessoais e interinstitucionais ali estabelecidas pelos agentes fronteiriços. Isto é reforçado pelo fato de que se pretendemos alcançar a melhor compreensão de um texto ou artefato cultural 37, e os produtos midiáticos se incluem neste rol, é necessário analisar os processos de representação, a identidade, a produção, o consumo e também a regulação de modo articulado38.

O trabalho investigativo iniciou-se pela busca de informações que deram indicativos históricos e atuais sobre os processos sociais que se desenrolam ao longo dos anos na fronteira do Extremo Sul do Brasil com seus vizinhos do Prata, especialmente o Nordeste da Argentina e Norte do Uruguai.

A partir de um levantamento prévio, foi possível elaborar um panorama geral a ser investigado. Este procedimento fez-se necessário, pois o ingresso em uma comunidade distinta a partir de tais informações permite uma aproximação muito mais fácil com seus membros, e porque não dizer mais responsável, pois se eliminam prováveis deformações na concepção sobre a realidade.

O próximo passo foi a inserção na comunidade, momento em que se procurou minimizar a distância do "intruso" com o grupo social com quem se pretendia trabalhar. Assim, seguindo o procedimento aconselhado por Brandão, o pesquisador deve esforçar-se para ir sendo, pouco a pouco, aceito pelo grupo. Entretanto, "precisa ser aceito como realmente é, ou seja, como alguém que vem de fora, que se dispõe a realizar, com o grupo, um estudo que pode lhe ser útil, mas que, num determinado momento, irá embora". (BRANDÃO, 1986, p. 27).

Dando continuidade ao processo de pesquisa, passou-se à coleta de dados junto ao grupo sobre as questões envolvendo a fronteira, prosseguindo no sentido de organizar o material coletado, devolvendo-o sistematicamente ao grupo para discussão e trazendo reflexos na sua ação. Criou-se, então, um perfil da comunidade que ficou melhor desenhado a partir da análise mais criteriosa dos elementos levantados, como documentos oficiais, depoimentos de autoridades ou figuras representativas dentro desses grupos, da observação da vida cotidiana (através de manifestações culturais, esportivas, religiosas etc.) da identificação das formas e dos mecanismos de poder internos e externos.

Uma das maneiras de se conseguir tais informações foram as entrevistas livres que, a partir de um fio condutor ligado ao núcleo temático, possibilitaram um diálogo aberto. Assim, estimulou-se a livre expressão das pessoas com quem se conversou, ampliando "o campo do discurso que passa a incluir não só fatos e opiniões bem delimitadas, mas também devaneios, projetos, impressões, reticências, etc" (BRANDÃO, 1986, p. 29).

Através desta técnica nada é desprezado, pois os fragmentos do discurso, isto é, o "não-dito" e o "mal dito", são tão importantes quanto as respostas, muitas delas superficiais. Os discursos a serem decodificados foram, desta forma, todas as dimensões da vida cotidiana da referida comunidade.

Para evitar um deslocamento do eixo central de interesse da pesquisa, a direção na estruturação do roteiro de perguntas, foi de encaminhar para esclarecimentos com relação à atividade profissional, idade, naturalidade - se nascido e "criado" na região - , combinadas a perguntas abertas, com o objetivo de obter nas respostas, uma maior elaboração do entrevistado, dando-lhe mais liberdade e evitando que este ficasse preso na seleção de apenas uma alternativa correta (RICHARDSON, 1999).

Ao investigar-se, a partir das práticas, além de atender aos objetivos específicos da pesquisa, passou-se a criar condições para que os membros do grupo exercitassem um movimento de recuo crítico, fazendo com que os protagonistas passassem a discutir, decifrar e agir sobre a temática geradora, representada neste caso pela presença da fronteira. Sendo assim, tanto comunidade como pesquisador assumiram o papel de agentes transformadores e objetos destas transformações. Os movimentos de idas e vindas se processaram continuamente e auxiliaram no direcionamento do estudo. Acredita-se que, após a conclusão de um trabalho como este, tanto comunidade como pesquisador não são mais os mesmos, as marcas deixadas por um sobre o outro passaram a compor os novos sujeitos dali decorrentes.

Como pressupõe a HP, além de fazer um mapeamento geral do espaço investigado, tornou-se fundamental passar pela instituição mídia, representada pelos jornais impressos locais. Tais estruturas são antes de mais nada organizações que fazem parte do grupo definido como indústrias culturais. São empresas cujo produto final é o jornal, veículo de circulação prioritariamente local, que tem como público-alvo o morador da comunidade, os habitantes das cidades fronteiriças.

Os primeiros contatos puderam dar conta de levantar as informações básicas a respeito das organizações, propiciando a formulação de um briefing. Esta coleta de dados foi fornecida, principalmente, pelas próprias administrações das instituições, pois nada melhor do que conseguir tais informações a partir da observação e do contato direto com seus dirigentes conforme sugere Kunsch (1986). Este levantamento possibilitou construir um mapeamento geral sobre elas e trouxeram esclarecimentos a respeito de: dados gerais; estrutura organizacional; tipologia; variáveis culturais, sociais, políticas, econômicas; ambiente operacional; infra-estrutura; públicos envolvidos; processos comunicacionais internos e externos. A complementação do quadro delineado ficou por conta das informações retiradas de conversas informais com os diversos públicos ligados às instituições.

As empresas jornalísticas serviram como pontos de referência nas comunidades. Desta forma, para entendermos por que caminhos o processo comunicacional midiático se desenrola, definimos que a análise das rotinas produtivas, mesmo superficial, iria fazer parte do estudo, buscando entender os processos de construção da notícia.

Como sugere Tuchman, por serem as notícias um produto dos informadores, configurando-se como resultado de recursos culturais e negociações ativas, o ato de construção da notícia é um ato de construção da realidade mais que uma imagem da realidade: "O trabalho informativo transforma os fatos em acontecimentos informativos. Se baseia em aspectos da vida cotidiana para narrar relatos e nos apresentar a nós mesmos" (TUCHMAN, 1983, p. 24). E, ao cumprir esta tarefa, serve de base para a ação social. Além disso, o processo de produção da notícia não se dá em um vazio. O profissional da mídia serve aos interesses da organização à qual está vinculado, reforçando os processos institucionais nos quais o trabalho informativo está engajado.

Assim, é importante avaliar as rotinas produtivas, isto é: a posição dos repórteres e dos diretores no tempo e no espaço; o modo como as organizações midiáticas definem a forma de encontrar fatos a serem transformados em notícias; as cadeias burocráticas de autoridade que se sucedem para seguir na busca de fatos; a negociação de responsabilidades; a seleção negociada das notícias. Esses fatores são relevantes, pois, conforme afirma Tuchman (1983, p. 25), as negociações coletivas "concedem o atributo de 'noticiabilidade' (merecer ser notícia) a fatos cotidianos". As fontes são parte integrante da rede informativa, onde jornalistas, rotinas organizacionais e laços com as instituições legitimadas estão presentes.

De modo preliminar e genérico, é possível dizer que a realidade das empresas jornalísticas sediadas no interior é diversa da registrada nos grandes centros urbanos. Primeiramente, constatou-se que a formação dos donos destas organizações interioranas não é necessariamente em jornalismo, ou qualquer área vinculada à comunicação. Da mesma forma, os profissionais que atuam nas redações não são egressos da área, e, apesar de algumas peculiaridades, possuem critérios de seleção de notícias similares aos dos jornais das grandes cidades. Além disso, percebeu-se que pessoas que atuam na mídia na capital, para fugir do fantasma do desemprego, deslocam-se para o interior em busca de trabalho e passam a atuar em uma realidade diferenciada.

Em se tratando do produto final dessas indústrias culturais, no caso específico jornais impressos, o público-alvo são os leitores, membros da comunidade local. Os diferentes textos que são estampados nas páginas dos jornais merecem especial atenção, assim como o processo de produção destes textos e o público ao qual o veículo é destinado.

Para completar a interpretação recorremos ao estudo dos discursos que nos forneceu indicativos de como realizar tal exercício analítico. De acordo com a amplitude proposta pela HP, os textos jornalísticos são o ponto chave para que seja possível verificar e interpretar quais são as notícias e sob que estrutura são trazidas a público através das páginas dos periódicos.

A intenção desta avaliação, considerando o processo como midiatizado, é a de reconhecer quais as vozes e quais são os atores apresentados, para verificar como a cidade e as relações entre seus habitantes se constitui através do discurso jornalístico39. Compreende-se que produção de sentido depende do social apresenta-se é ponto fundante do estudo dos discursos, pois não se pode conceber qualquer fenômeno de sentido fora do âmbito significante da cultura. No entanto, tal concepção não deixa de ser problemática porque nem sempre é fácil retirar daí todas as conseqüências para a composição de uma teoria do sentido. (VERÓN, 1980, p. 173).

Mais do que descolar as palavras dos textos para análise, há que se fazer um exercício mais complexo com a preocupação de observar que sentidos são mobilizados; quem são seus enunciadores; quais as intenções que estão por trás dos discursos eleitos e como estes estão impressos nas folhas dos jornais; que acontecimentos se transformam em fatos noticiosos, merecendo um processamento dos profissionais que atuam na mídia. Por tudo isto, é necessário remeter a análise dos textos ao contexto, pois

O fato já é uma construção e uma soma. (...) A aparição do acontecimento no jornal constitui, assim, uma segunda aparição, uma construção de segunda ordem. O discurso jornalístico é um metadiscurso - um discurso que se constitui a partir de outros. Ele não constitui, porém, uma simples repetição; ao contrário, a sua construção cria uma nova realidade (FRANÇA, 1997, p. 489).

O que não é passível de aceitação é conceder única e exclusivamente à estrutura interna do texto a responsabilidade de produzir sentido. Como ressalta a proposta da Hermenêutica de Profundidade, o discurso por si só não mobiliza sentido, já que existem elementos que se fazem presentes no contexto e que afetam diretamente nesta construção, composta por formas simbólicas, ou seja, uma gama de ações, falas, imagens e textos, que passam a ser reproduzidos por sujeitos, reconhecidos por eles e outros como elaborações significativas.

Ressalta-se que a forma e o conteúdo das mensagens têm uma estreita relação com a audiência, pois só assim a mídia poderá angariar a compreensão e o apoio desta. Nos estudos dos discursos 40, os textos devem ser considerados como partes constitutivas de práticas sociais, inseridas em contextos específicos, por isso devem ser entendidos como discursos cujos participantes assumem o papel de sujeitos, tanto pelo fato de estarem inseridos num contexto como por se tornarem agentes nas três etapas do processo comunicativo. Por outro lado, estas falas são produto de múltiplos discursos alguns claramente identificáveis outros escondidos por detrás dos textos41.

Entretanto, por mais que se insista na importância da contextualização para o estudo dos discursos, esta etapa é uma das tarefas mais difíceis de ser realizada:

A produção, a circulação e o consumo dos textos são controlados pelas forças socioculturais, mas os textos também constituem a sociedade e a cultura, de um modo que pode ser tanto transformativo como reprodutivo, e a análise não pode separá-los. (...) Não é mais aceitável pensar uma relação causal rígida, invariável, mecânica e exclusiva entre 'infra-estrutura' onde só os fatores econômicos contariam, e a 'superestrutura', domínio único do ideológico, do discurso. Por isso, passar da análise lingüística para a interpretação é uma empreitada difícil (PINTO, 1999, p. 44).

Uma possibilidade apontada pelo estudo dos discursos, proposto por Pinto (1999), aponta uma ênfase à análise do que o texto diz e mostra, tendo em vista os três níveis de contexto: situacional imediato, institucional e sociocultural mais amplo. Ressalta-se, ainda, que as teorias lingüísticas adequadas a este tipo de estudo são aquelas que conceitualizam, também, os usos da linguagem em contextos. Nessas teorias, os discursos são vistos como práticas sociais, elementos que integram o todo e, por isso, têm papel fundamental ao reproduzirem, reforçarem ou transformarem as representações feitas pelas pessoas, bem como as relações e identidades com que se definem numa sociedade, onde os textos são um dos caminhos pelos quais se desenrolam as relações sociais. Ainda de acordo com esta proposta fica a ressalva de que é também crucial para realizar estudos de discursos a análise comparativa, pois só desta maneira será possível dar conta do contexto.

Na outra ponta do processo comunicacional, o que não representa o final do circuito, está o receptor, elemento presente e ativo. Analisar este componente, mesmo que de maneira simplificada, é fundamental para a proposta aqui apresentada. Destacamos, porém, que nossa intenção não foi a de elaborar um estudo aprofundado deste elemento da comunicação e sim considerá-lo, pois é para este sujeito que o jornal é destinado, muito embora, e não raramente, pareça estar esquecido, ou definido como elemento identificado pelos que produzem as mensagens veiculadas.

Aceitamos a concepção de recepção como: "o lugar privilegiado de negociações e de estruturação do próprio significado. Quer dizer, não é a mensagem em si, não é ela que vai encerrar todo o símbolo, pois o símbolo só existe enquanto tal, ou em sua totalidade, como processo interativo, em seu momento de decodificação, isto é, de comunicação". (LEAL42, 1995, p. 114). O que passa a ser consumido pelo receptor (no caso específico, leitores de jornais) não pode ficar reduzido a uma reprodução de forças, pois é também uma produção de sentido, passando pelos usos das mensagens por eles veiculados, dando-lhes forma social, nas quais se "gravam demandas e dispositivos de ação que provêm de distintas competências culturais" (MARTÍN-BARBERO, 1993, p. 231). Tanto no consumo como na leitura, se processa mais do que o consumo, mas uma produção que questiona o papel central do texto e de verdade da mensagem43.

Como é possível verificar, uma vez mais, ao tratar da comunicação através da análise desta como um processo, vem o indicativo de ligá-la às questões que envolvem a cultura e o cotidiano. Entretanto, estabelecer critérios para que se possa constatar quais os movimentos realizados pelo receptor sobre as mensagens trazidas pela mídia, vendo-o como elemento singular e não como um componente qualquer, destituído de diferenciais, não é um trabalho simples.

Ao articular referências teóricas a metodologias que dêem conta do exercício de investigação que se constitui o estudo de recepção, é exigido ao pesquisador que realize a seleção de elementos que possam ser considerados parte constitutiva do todo e sobre os quais deve dedicar atenção. A compreensão deste sujeito, considerando o contexto em que está inserido e as bagagens que carrega, deve processar-se a partir e através de um estudo aprofundado capaz de desvendar quem é este indivíduo, ser único, mas ponto referencial para indicar reflexões sobre as características, comportamentos e atitudes de determinado grupo.

Na escolha de representantes desta categoria, definiu-se que, através de suas falas e depoimentos, seria possível criar uma base referencial, não ficando desta forma estipulada uma caracterização para o grupo como um todo e sim pontos indicativos sobre os membros da comunidade. Desenvolver tais procedimentos44, inferindo conexões que possibilitem movimentos de descobrimento e interpretação, que se dão pela criação de conjunções capazes de propor novas abordagens que satisfaçam as exigências dos estudos de recepção, é entender que:

o que passa na recepção é algo que diz respeito ao seu modo de vida, que há uma outra lógica, subjacente à da racionalidade que permeia o âmbito da produção. (...) Estudar a produção de sentido no espaço da recepção significa pensar os processos de comunicação a partir do âmbito da cultura, o que rompe com o encaminhamento da investigação através de disciplinas ou dos meios, recaindo sobre os elementos que são especificidade ao uso deles e de suas mensagens, no contexto da audiência. (...) Os 'usos', portanto, são inalienáveis da situação sociocultural dos receptores, que reelaboram, ressignificam, ressemantizam os conteúdos massivos conforme sua experiência cultural, a qual dá suporte a esta apropriação (JACKS, 1999, p. 50-51).

Como se detecta, a análise da recepção é complexa. Cada ambiente tem suas peculiaridades e é ocupado por diferentes atores que, em um mesmo período temporal, fazem deslocamentos influenciando e sendo influenciados por este ambiente. Pela profundidade exigida, os estudos de recepção merecem atenção, pois é, também, através deles que se torna possível desvendar o processo comunicacional. Assim,

Nas pesquisas de recepção, o entendimento de que o estudo do cotidiano é essencial tornou-se um ponto pacífico, e grandes contribuições já foram incorporadas ao campo. Entretanto, e aí têm razão as críticas que recaem sobre boa parte delas, o problemático é considerar que este contexto alcance um nível de explicação suficiente para tratar a complexidade do processo da relação com os outros meios de comunicação de massa (JACKS, 1996, p. 202-203).

Em comunidades relativamente pequenas, como as das cidades interioranas, os fatores culturais comuns e de forte influência no grupo são mais facilmente identificáveis, mas nem por isso menos complexos. Mesmo considerando as forças que o contexto exerce sobre os indivíduos, é bom ressaltar que as ações realizadas por cada um dos membros que compõe o conjunto é exclusiva45, trazendo marcas que podem ser comuns a alguns em diferentes níveis e momentos, mas não podem ser estendidas à totalidade da comunidade observada em toda e qualquer situação.

Estabelecer a condição da recepção e do sujeito receptor (sujeito social, cultural, político) enquanto um lugar que recebe e processa as informações do ponto de vista do tesouro cultural que dispõe, acionando o conjunto de práticas, hábitos e saberes ao qual tem acesso, para avaliar, julgar, processar e interpretar os dados, permite à investigação da recepção dotar a pedagogia da comunicação de chaves de acesso e intervenção na realidade. O que está em jogo é a construção política da anatomia de um receptor que deve ser crítico, ou seja, deve possuir o instrumental hermenêutico que lhe permita ser capaz, por um lado, de perceber as mensagens midiáticas como produzidas no interior de uma sociedade de interesses (interesses de classe, para sermos mais precisos) e, por outro, de a elas resistir (GOMES, 1996, p. 213).

Apontamos acima os caminhos por onde circula a comunicação para que se configure como um processo, complexo, dinâmico, permanente, em constante mudança e que abre várias possibilidades de circulação. Como indica a HP, buscamos apresentar as passagens pelas quais o estudo aqui apresentado transita. Tal proposição é reforçada por outras como as sugeridas pelo Modelo de Integração de Hermenêutica Profunda e pelo Circuito da Cultura, todas apontando para um estudo entrelaçado entre produção, circulação e recepção, de modo contextualizado. Nossas proposições percorrem essa trilha buscando verificar tais atravessamentos, tendo como foco os textos publicados nos jornais fronteiriços onde a presença do fenômeno fronteira é preponderante.

Cabe destacar, uma vez mais, que, no presente trabalho, entende-se - e considera-se - a importância de estudos ligados à recepção como os direcionados aos discursos entre outros, mas, no caso específico, tais aportes corroboram para a criação de uma estrutura particular. Isto é, não são empregados como pontos centrais da pesquisa e sim como indicativos que auxiliam para que as partes envolvidas no processo comunicacional - produção, transmissão e recepção - não fiquem esquecidas, mas participem das tramas a serem interpretadas, configuradas a partir das diversas questões levantadas no espaço fronteiriço.

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3.2 Passos concretos

Decidimos dirigir o trabalho investigativo à análise dos textos presentes na mídia impressa local, ou seja, os principais jornais impressos de Uruguaiana e de Santana do Livramento, tendo como contraponto periódicos de Paso de Los Libres e de Rivera. Tal escolha recaiu sobre este veículo por entendermos que o jornal funciona como um documento onde é possível verificar algumas representações sociais46 válidas para uma comunidade, no caso a fronteiriça. Através desse instrumento foi possível identificar formas de colaboração e interação que se desenrolam no cotidiano local. Situações de conflito e tensão existentes ou desencadeadas no tecido social ficam estampadas na mídia, tornando possível ampliar o conhecimento sobre a dinâmica interna desses espaços 47.

É interessante ressaltar que o ano de 2000, definido para a coleta do material analisado, pode ser considerado um marco importante para a história. Naquele ano, foram comemorados os 500 anos de descoberta do Brasil e os cinco anos de existência do período de Consolidação do Acordo Mercosul. Coincidentemente, estavam marcadas eleições municipais no Uruguai, no Brasil e na Argentina, momento propício para se processar uma possível reconfiguração nas estruturas de poder local, alterando as relações institucionais na comunidade.

De maneira mais objetiva, tentaremos mostrar aqui quais as estradas foram percorridas, quais os atalhos escolhidos de modo a dar vida às proposições teórico-metodológicas anteriormente apresentadas e que possibilitaram chegar a conclusões a respeito das práticas sociais e dos processos midiáticos nos espaços fronteiriços.

No início dos trabalhos, definiu-se algumas questões como prioritárias. Nesta fase, foi realizada uma busca por informações que auxiliassem na construção da realidade cotidiana da fronteira entre o Brasil e a Argentina e entre o Brasil e o Uruguai. Consultas a documentos que relatam os acontecimentos históricos ocorridos em espaços específicos dessas fronteiras, isto é, Uruguaiana-Libres e Livramento-Rivera, tornaram-se fundamentais. O passo seguinte foi contatar com as empresas jornalísticas das cidades de Uruguaiana e Santana do Livramento.

As visitas tiveram início em julho de 2000, com o objetivo de realizar a coleta de dados e as observações do contexto. O roteiro previa a primeira parada em Uruguaiana, com possíveis idas a Paso de Los Libres, seguindo para Santana do Livramento e sua vizinha, Rivera. A preferência das visitas foi centrada nos dias úteis, para que fosse possível encontrar as pessoas a serem entrevistadas.

A referência primordial recaiu sobre um jornal impresso48 de cada um dos municípios brasileiros em questão, os mais representativos na comunidade, pelo tempo em que estão em circulação - um há mais de 60 anos e outro com mais de 20 anos de existência. Jornais de Paso de Los Libres e de Rivera também fizeram parte do estudo, mas apenas como elementos complementares. Em cada visita foram coletados os jornais publicados no dia. Para tanto, a agenda foi organizada de modo a poder acompanhar o fechamento do jornal e o recolhimento de um exemplar na manhã seguinte para análise futura.

Também fizeram parte do corpus da pesquisa jornais do mês de maio, pois, como estavam previstas eleições municipais nos três países, foram coletados em Uruguaiana, O Jornal, do dia 20 de maio, quando das eleições na Argentina, e em Livramento, A Platéia, de 14 de maio, data do pleito no Uruguai. Desta forma, teríamos a possibilidade de definir este evento como uma das referências possíveis para análise por representar um dos momentos onde há efetiva movimentação da comunidade já que a questão "troca de administradores e legisladores municipais" sempre aponta para mudanças na configuração da vida das comunidades locais.

Do outro lado da linha divisória, foram visitadas empresas jornalísticas argentinas e uruguaias de Paso de Los Libres e de Rivera, e coletados os jornais publicados na semana anterior às eleições brasileiras, realizadas em 2 de outubro49. Outras edições que pareciam importantes para complementar o estudo ou que foram indicadas pelos diretores e/ou repórteres (como edições de finais de semana, ou esclarecedoras, por exemplo, a respeito do jornal de Libres que firmou parceria com O Jornal de Uruguaiana, ou o marco inicial das campanhas eleitorais brasileiras, entre outras) também foram recolhidas.

Ao começar a análise das notícias e com o desenrolar dos acontecimentos nas cidades fronteiriças, definiu-se outros momentos como relevantes para a coleta de material50, entre eles o Carnaval, evento de importante repercussão na fronteira, festejado no início de março de 2000; e as comemorações da Semana da Pátria e Semana Farroupilha, dias 07 e 20 de setembro, respectivamente, ambas com a previsão de desfiles pelas ruas da cidade. Todos estes eventos foram considerados por se configurarem em manifestações culturais onde há um envolvimento efetivo dos povos nos espaços selecionados para a análise nos dois lados da linha fronteiriça.

Após a leitura do material coletado, ficaram definidos os seguintes exemplares para análise dos textos:
a) O Jornal de Uruguaiana - 16 edições
b) El Interior 51 (de Corrientes/ Libres) - 2 edições52;
c) A Platéia - 17 edições;
d) Norte 53 (de Rivera) - 6 edições.



Figura 1 - Calendário dos jornais analisados (2000)



As primeiras visitas foram direcionadas às empresas jornalísticas de Uruguaiana e Livramento para que fosse possível fazer um mapeamento estrutural das organizações. Foram entrevistados os proprietários de cada um dos jornais - os que estavam mais envolvidos com a administração das instituições. O objetivo com tal procedimento era de conhecer um pouco melhor a estrutura interna das empresas e definir quem seriam as pessoas entrevistadas na continuidade da pesquisa.

Passamos então a conversar com os editores, ou melhor, com os responsáveis pela redação. Em Uruguaiana, a edição sempre foi feita por um jornalista (durante o segundo semestre de 2000 o cargo foi ocupado por três pessoas alternadamente, duas foram entrevistadas, a que atuava até agosto e a que atuou de setembro a novembro). O trabalho destes profissionais era acompanhado pela diretora do veículo que também opinava sobre a seleção e a distribuição do material nas páginas do mesmo. Em outubro, quando O Jornal fez convênio com o periódico argentino - El Interior - um dos diretores deste veículo (também vice-presidente do Círculo de Prensa da região, um tipo de sindicato dos jornalistas argentinos) foi entrevistado sobre como eram desenvolvidas as atividades jornalísticas do periódico de Libres.

Em Livramento, o cargo de editor ou redator-chefe não existia. A produção dos repórteres era acompanhada por um dos diretores. Entretanto, os dois diretores supervisionavam o trabalho da redação, fazendo sugestões quanto ao tratamento a ser dado às matérias de A Platéia. Verificou-se que em nenhum dos jornais havia alguém designado para centralizar a produção das notícias capaz de definir um panorama geral de cada edição.

Após os primeiros contatos, representantes de cada segmento ligado aos jornais foram contatados, alguns deles sugeridos pelos profissionais dos veículos. Nesta gama, foram definidas categorias para enquadrar os grupos a serem entrevistados. Dentro das empresas jornalísticas, dirigentes, editores e repórteres foram consultados. Além destes, e a partir das solicitações da própria metodologia de pesquisa, outros membros da comunidade foram procurados, como pesquisadores locais, capazes de auxiliar na remontagem do quadro referencial histórico da região fronteiriça, buscando, também, traçar relações entre o fenômeno fronteira e a mídia impressa local.

Em Uruguaiana, o pesquisador consultado foi um funcionário público municipal aposentado, colaborador regular de O Jornal, onde tem uma coluna sobre os fatos históricos da região. Em Livramento, o contato principal foi feito com um jornalista/radialista - na época candidato à Câmara de Vereadores de Livramento - que trabalhou junto com o pesquisador Ivo Caggiani54. Este jornalista convidou dois colaboradores, ambos funcionários públicos (um deles brasileiro, já aposentado, o outro uruguaio), estudiosos da história local, para darem seus depoimentos sobre a vida na fronteira e o papel da mídia impressa local para a comunidade.

Para complementar o estudo, formam selecionadas e entrevistadas pessoas consideradas pela mídia local como fontes de informação; outras como leitores das notícias divulgadas pelos jornais locais; e outras ainda que, pelo conhecimento e vivência na região fronteiriça, poderiam contribuir com a realização da pesquisa55, esclarecendo questões envolvendo a fronteira e os jornais impressos locais. No item fontes, foram procurados representantes de instituições, ou autoridades nas áreas da política, polícia, economia, cultura e de entidades não-governamentais56. Foram ouvidos os representantes de cada um dos campos acima citados57, tanto em Uruguaiana como em Livramento.

No rol das fontes de informação, em Uruguaiana, foram constatados o Delegado de Polícia, natural de São Paulo e há poucos anos na cidade; o presidente da Associação dos Arrozeiros, geólogo e agropecuarista, natural de Cruz Alta; uma professora58, assessora de Turismo e Cultura da Prefeitura Municipal de Uruguaiana; o presidente da Comissão Binacional de Meio Ambiente59 e também assessor de vereador; o presidente da Câmara de Vereadores, comerciário; destacando-se o fato de os três últimos serem naturais de Uruguaiana.

Em Livramento, os entrevistados foram o Delegado de Polícia, natural de Canoas60, designado na época, há pouco mais de três meses, para aquela região; a secretária da ACM/ACJ Fronteira61, uma jovem com formação no ensino médio; no ramo de economia e negócios, o entrevistado foi um empresário62, natural de Lajeado, proprietário de concessionárias de automóveis na região, morador de Livramento há 13 anos; o presidente da Câmara de Vereadores, um médico formado no Uruguai, possuidor de dupla cidadania e que atua no ramo imobiliário; a presidente da Casa do Poeta Santanense (CAPOSAN) com formação em pedagogia, "criada" em Livramento, mas que viveu alguns anos em Porto Alegre, retornando há três anos.

Como se pode perceber, as indicações para a escolha deste grupo não seguiram os mesmos critérios de representatividade para a comunidade e sim de relevância para a mídia que vê estas figuras como fontes de informação, repassando dados, ou participando dos acontecimentos que se transformam em notícia.

Para construir o mosaico do estudo, figuras que simbolizam o outro pólo da extremidade do processo comunicativo, o leitor, foram entrevistadas. As características eleitas para a escolha de tais leitores foram as seguintes: a) pessoas que enviam textos/comentários para publicação no jornal; b) indivíduos que renovam a assinatura do veículo espontaneamente; e c) assinantes que reclamam se o veículo não é entregue. São homens e mulheres que dão à mídia um papel de destaque nas suas vidas, aguardando, a cada dia, as notícias sobre os acontecimentos da comunidade. Eles vêem nos meios de comunicação, como o jornal impresso, um canal aberto para expressarem suas opiniões, dando à mídia a incumbência de ser o veículo de divulgação de suas idéias e proposições. Depositam no jornal local a atribuição e a responsabilidade de tornar públicas as informações pertinentes à comunidade, servindo como porta-voz do pensamento dos líderes de opinião da coletividade e que, por sua vez, também sugerem temas a serem agendados. Desta forma, reforçam a possibilidade de o veículo definir como abordar os acontecimento, a que atores chamar e como estes farão parte das cenas.

Em Uruguaiana, os leitores ouvidos foram sugeridos por funcionários do setor administrativo d'O Jornal, que, por terem contato mais direto com estes, consideravam-nos leitores assíduos do periódico. O grupo ficou assim constituído: um empresário, dono de uma frota de tele-táxi, natural de Uruguaiana, que enviava seguidamente textos para serem publicados n'O Jornal; o proprietário de uma loja de embalagens de Uruguaiana, morador da cidade desde 1969, e que se dirigiu à empresa jornalística para renovar a assinatura d'O Jornal; uma aposentada e pecuarista, natural de Quaraí, e moradora de Uruguaiana há 30 anos, que ligou para O Jornal reclamando que a edição de um dos dias não havia sido entregue.

Em Livramento, os entrevistados selecionados entre os leitores foram os seguintes: uma agropecuarista, formada em Ciências Contábeis, moradora da cidade há 23 anos, que colabora com A Platéia enviando textos, na sua grande maioria, publicados pelo veículo; um comerciante local, proprietário de uma lancheria/sorveteria, natural de Livramento, que ligou para o jornal solicitando a renovação da assinatura; um barbeiro, também natural de Livramento, que ligou para o jornal solicitando o exemplar de um dos dias que não havia sido entregue.

As entrevistas se configuraram em conversas informais onde cada membro do grupo foi consultado individualmente63, deixando transparecer sua visão de como a presença da fronteira afeta as relações estabelecidas no ambiente local e como a mídia elabora este elemento em suas páginas. Descreveram como se dão as trocas entre brasileiros, argentinos e brasileiros, uruguaios, como vêem o "outro" e qual a percepção que têm sobre os limites entre os territórios e as características dos habitantes de cada país envolvido. Relataram as ligações do jornal local com a comunidade e sua importância como veículo de comunicação que retrata em seus textos as peculiaridades da vida na fronteira.

Com o andamento das entrevistas e com o acordo de cooperação firmado entre O Jornal de Uruguaiana e o periódico El Interior64, surgiu a idéia de conversar com os responsáveis pelas Casas Consulares do Brasil, em Libres e em Rivera; da Argentina, em Uruguaiana; e do Uruguai, em Livramento. As entrevistas trouxeram dados importantes sendo que a colaboração do Cônsul do Brasil, em Libres foi diferenciada, pois este permaneceu naquela região por onze anos, local onde teve a oportunidade de ministrar aulas no Campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em Uruguaiana, conhecendo as dificuldades enfrentadas em níveis diplomáticos e desenvolvendo a atividade de professor junto a estudantes fronteiriços, muitos deles filhos de estancieiros, membros de famílias tradicionais.

Outro grupo que se destacou no decorrer dos trabalhos foi o dos árabes-palestinos, por isso escolhemos um representante em cada um dos espaços pesquisados para ser entrevistado. Em Uruguaiana, o escolhido como representante desta comunidade foi o presidente da Sociedade Árabe-Palestina. Comerciante local, uruguaianense, filho de mãe brasileira e pai árabe que viveu 20 anos na Jordânia e já foi candidato a vice-prefeito nas últimas eleições municipais de 2000. Na época da entrevista, era pré-candidato a deputado federal pela região para o ano de 2002. Em Santana do Livramento, o representante deste grupo foi um comerciante local, bem conhecido e respeitado pela comunidade santanense-riverense. Natural da Palestina, chegou na fronteira do Brasil com o Uruguai no ano de 1981. Na sua terra natal, ele era professor de Filosofia, em Livramento é proprietário de lojas de vestuário, farmácias e poeta, tendo recebido o título de presidente de Honra da Casa do Poeta Santanense, entidade que congrega escritores, artistas e poetas da região.

Com relação aos textos jornalísticos coletados para a análise final do estudo, identificamos 315 textos informativos ou opinativos65, entre eles manchetes, reportagens, entrevistas, notas, fotos e legendas, charges, poesias, comentários, editoriais, opinião do leitor, que apresentavam a fronteira como elemento importante.

A definição das categorias, para melhor analisar os textos jornalísticos dos periódicos O Jornal de Uruguaiana, El Interior, A Platéia e Norte, que tratam da questão fronteira, foram construídas passo a passo, a partir da leitura e da análise dos textos. Uma primeira forma de agrupá-los foi através da identificação dos elementos que apontavam para a relação entre os fronteiriços como "vizinhos"; "as relações do local com o internacional, com o nacional e com o regional"; e a possibilidade que o espaço fronteiriço abria para "manifestações culturais distintas", entre elas a gauchesca, a palestina, a brasileira e a dos povos vizinhos.

Percebeu-se, no entanto, que esta não era a melhor forma de definir as categorias de análise acima citadas. O passo seguinte foi reorganizar o material em outros eixos. Houve uma redefinição que ficou, ainda de modo rudimentar, assim desenhada: quatro grandes categorias. A primeira dizia respeito ao "nós do local"; a segunda, onde predominava o "status de internacional, nacional, estadual ou regional"; a terceira, dando ênfase aos "distanciamento"; e a quarta, onde o forte do material analisado apontava para a visível separação entre os habitantes da fronteira.

Após uma análise mais criteriosa, organizou-se os textos em dois eixos centrais com suas devidas subdivisões. O primeiro eixo tendo como carro chefe a questão fronteira, dividido em três grupos: uso e denominações da expressão fronteira; fronteira como amálgama cultural; fronteira com status de internacional, nacional, estadual ou regional. O segundo eixo, centrado no nós, ficou dividido em quatro grupos: o primeiro nós, os brasileiros ou os uruguaios ou os argentinos, incluindo-se aqui os subgrupos nós, os daqui e eles, os de lá e nós, os daqui mas sem excluí-los; o segundo grupo definido pelo nós todos (os fronteiriços), dividido em nós, os de cá mais os de lá e nós, marginalizados; no terceiro grupo estaria classificado o nós da região e o último grupo nós, ocultos.

A intenção com esta categorização era de verificar de forma mais clara como a fronteira surge no material coletado, isto é, como este fenômeno é representado na mídia impressa local. A fronteira está presente nos textos publicados pelos jornais analisados permeando os vários Campos Sociais, mesmo quando ela não está sendo tratada diretamente como tema.

Mas, para que se torne mais consistente este exercício interpretativo, passemos primeiro pelas vozes que falam a respeito dessa fronteira e as leituras que são feitas pelos habitantes locais sobre a sua condição, as relações que estabelecem e o fenômeno que os envolve, a fronteira.

36 Como salienta Berlo, quando se quer descrever algo como um processo - no caso o da comunicação - enfrenta-se problemas, porque este é dinâmico, não se pode paralisá-lo para a análise. Por outro lado, para realizar tal atividade, é preciso usar a linguagem, que por si só é dinâmica. Neste sentido, é importante destacar que "as coisas de que falamos não têm de existir exatamente na forma como as tratamos, e por certo não precisam operar na ordem em que sobre elas falamos" (BERLO, 1997, p. 35). Faz-se um recorte que implica limitações impostas para a discussão.

37 Segundo Silva, um artefato cultural "tem efeito sobre a regulação da vida social, por meio das formas pelas quais ele é representado, sobre as identidades com ele associadas e sobre a articulação de sua produção e de seu consumo" (SILVA, 2000, p. 68).

38 Paul Du Gay, Stuart Hall, Linda Janes, Hugh Mackay e Keith Negus sugerem que estes elementos - regulação, consumo, representação, identidade e produção - entrelaçados, compõe o 'circuito da cultura' e pode-se partir de qualquer um deles para compreender um texto ou artefato cultural, desde que esse exercício seja realizado a partir da articulação dos referidos elementos (SILVA, 2000, p. 69).

39 Um estudo de um grupo de pesquisadores, do qual Néstor García Canclini é membro, em jornais da Cidade do México, registrou que, como ocorre em muitas grandes cidades, há cadernos que aparecem semanalmente, e/ou todos os dias em alguns periódicos, e que falam da cidade e deixam falar a cidade. Tal estudo revela que o discurso jornalístico sobre a cidade do México é, em 50%, o que os dirigentes ou as autoridades ou os meios, em suma os agentes hegemônicos, dizem sobre a cidade. E que um lugar menor é concedido ao que os atores sociais de base, os cidadãos, pensam ou falam dela (CANCLINI, 1997 a, p. 90).

40 Pinto (1999) emprega a expressão no plural para dar a idéia de multiplicidade e também para fugir das grandes categorias abstratas "à maneira do estruturalismo".

41 Isto nos remete ao conceito de polifonia tratado por Bakhtin, também aceito e defendido por Pinto (1995) que considera um texto como um conjunto de vozes.

42 Entendendo cultura como um sistema de significados, Ondina Fachel Leal desloca a ênfase dos estudos de comunicação para a recepção.

43 E neste aspecto é bom deixar claro o conceito de leitura como sendo "a atividade por meio da qual os significados se organizam em um sentido". (SARLO apud MARTIN-BARBERO, 1993, p. 232).

44 Uma das possibilidades de construção deste tipo de análise está presente nos estudos de Nilda Jacks, que entrelaça as proposições de Martín-Barbero - já referidas rapidamente, e que são remetidas aos meios e mediações - com as de Guillermo Orozco que desdobra em duas as possibilidades de mediações centradas no indivíduo. Uma delas é a mediação cognitiva, baseada no processo lógico da informação e nos sistemas de crenças e valores do indivíduo; outra, a mediação estrutural, possuidora de elementos relacionados ao sexo, à idade, à etnia etc., que irão compor a identidade do sujeito. Além destas, devem ser consideradas outras mediações que se dão, digamos assim, ao redor do indivíduo, mas que influenciam seus movimentos de percepção, leituras, interpretações e produção de sentido, como a mediação situacional, cultural, institucional e de referência.

45 Como sugere Canclini: "o patrimônio de uma nação, ou de uma cidade, é distinto para diferentes habitantes. Representa algumas experiências comuns, mas também expressa as disputas simbólicas entre classes, os grupos e as etnias que compõem uma cidade". Os diferentes discursos emitidos pelas diferentes mídias são recebidos de maneiras distintas nos espaços íntimos, lugar onde também se constitui o sentido urbano (CANCLINI, 1997 b, p. 95).

46 O conceito de representações sociais é usado conforme é definido pelas Ciências Sociais: "categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a" (MINAYO, 1995, p. 89).

47 Diversos esforços têm sido feitos em várias áreas para analisar as práticas sociais nos espaços fronteiriços, muitos deles com o objetivo de valorizar a cultura fronteiriça e esta como fator de contribuição para o processo integracionista, como os desenvolvidos pelo Instituto de Comunicação, Cultura, Educação e Formação Política Alberto André, pelo Centro de Estudos em Literatura e Psicanálise Cyro Martins, pela Assessoria de Relações Institucionais e Internacionais da UFRGS (1995), entre outros.

48 Pensou-se em trabalhar concomitantemente com a mídia radiofônica devido à sua penetração nos territórios vizinhos, mas por dificuldades na operacionalização da pesquisa a opção foi descartada.

49 Pelo número de habitantes, e de acordo com legislação federal, em municípios como Uruguaiana e Livramento só ocorre um turno eleitoral.

50 Tal movimento realizado pelo pesquisador no âmbito da pesquisa quantitativa, e principalmente se tratando de o material coletado ser recolhido do campo midiático, é previsível no sentido de implementar correções para compensar os vieses que vão sendo identificados, como sugere o "Delineamento do corpus como um processo cíclico". (BIBER apud BAUER; AARTS, 2002, p. 53).

51 Também foram recolhidas duas edições (uma de setembro e outra de outubro) do jornal Horizonte (de Libres), mas optou-se por analisar El Interior, que possui páginas em português.

52 O jornal El Interior inicia sua publicação em outubro de 2000. No mesmo mês passa a publicar duas páginas em português, com matérias provenientes de O Jornal de Uruguaiana.

53 Do jornal Jornada (de Rivera) foram coletadas sete edições (todas de setembro), mas decidiu-se analisar o jornal mais antigo de Rivera.

54 Falecido em maio de 2000, Ivo Caggiani era muito conhecido na região.

55 As entrevistas com as fontes foram realizadas no local de trabalho de cada uma. As entrevistas com leitores foram feitas nos jornais, nas residências ou nos locais de trabalho. Para enriquecer o estudo, foi aceita a sugestão dos jornalistas locais de entrevistarmos os representantes consulares das cidades envolvidas na pesquisa.

56 Estas com a característica de realizar atividades nos dois países em contato.

57 Outro setor que pensávamos ser relevante para o estudo é o religioso, já que Uruguaiana possui um bispo da Igreja Católica responsável por toda a região de fronteira. No entanto, nos jornais analisados, bem como nas entrevistas, a presença da igreja, e não só a católica, está registrada, mas sem destaque maior. Do mesmo modo, a área militar foi pouco citada pelos entrevistados, e sua aparição nas páginas dos jornais é bem pontual. Mesmo que a região fronteiriça configura-se em espaço estratégico e existindo quatro quartéis em Uruguaiana e dois em Livramento, quatro em Rivera e cinco em Paso de Los Libres, em rápido levantamento, também descartou-se o aprofundamento no setor militar. Cabe ressaltar que, como a própria história demonstra, outrora tanto a igreja como o exército tinham forte poder nos espaços fronteiriços, influindo inclusive nas políticas de povoamento das colônias latinas. Hoje estas instituições não possuem o mesmo poder de influência.

58 A pessoa que ocupava o cargo na gestão de 1997/2000.

59 No ano de 2000 a presidência da Comissão estava nas mãos de um brasileiro.

60 Um dos municípios que compõem a região da Grande Porto Alegre, capital gaúcha.

61 Depois conversamos com a assessora executiva da instituição que, embora não tenha sido indicada pelo pessoal de A Platéia como fonte de informação da ACM/ACJ, fez alguns esclarecimentos.

62 Segundo os diretores do jornal, o empresário era a pessoa mais indicada na área pois trata-se de um homem bem sucedido nos negócios e conhecido dos diretores do jornal, sendo também vizinhos.

63 Exceção feita aos pesquisadores locais em Livramento-Rivera, entrevistados em conjunto.

64 A partir do acordo firmado entre as duas empresas jornalísticas e devido aos impasses surgidos junto à Aduana do lado argentino, os diretores de O Jornal de Uruguaiana foram obrigados a recorrerem à Casa Consular da Argentina em Uruguaiana, solicitando um documento que liberasse a passagem do material e dos jornais impressos na linha de divisa da fronteira, já que este fluxo se tornaria quase que diário.

65 Nestes textos não estão incluídos os anúncios publicitários nem as propagandas políticas, muito recorrentes na época das campanhas eleitorais. Nos periódicos coletados para a análise, existiam 11 anúncios publicitários em O Jornal; 14, em A Platéia; e 10, em Norte, nenhum em El Interior. Somente em A Platéia encontrou-se uma inserção de propaganda política, referindo-se à fronteira.

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