Resumo

Preâmbulo

Lista de Figuras

Lista de Siglas

Introdução

Primeira Parte: A fronteira
e a Comunicação

1 Caracterização
do Objeto de Pesquisa

1.1 Identidades
e Espaços de Fronteira

1.2 Cultura, ideologia
e meios de comunicação


2 Contextos de Inserção
do Objeto da Pesquisa

2.1 Fronteiras Vivas
2.2 Pólos de Integração
2.3 Caracterização Geral
2.4 Jornalismo e Mídia
Impressa


3 Abordagem Metodológica
3.1 Táticas de
Aproximação do Objeto

3.2 Passos Concretos

4 Vozes sobre as Relações
na Fronteira

4.1 Uruguaiana-Libres
4.2 Santana do
Livramento-Rivera

4.3 Comparando os
Dois Espaços


5 Caracterização dos Jornais
5.1 Jornais de Uruguaiana-
Libres

5.2 Jornais de Livramento-
Rivera


Segunda Parte: A fronteira
na mídia local impressa


6 Análise dos Textos
Selecionados

6.1 A Fronteira
6.1.1 Preliminar: diferentes
usos da expressão fronteira

6.1.2 Fronteira como
amálgama cultural

6.1.3 Fronteira como
transcendência do local

6.2 O fronteiriço
6.2.1 Nós, ou brasileiros ou
argentinos ou uruguaios

6.2.2 Nós todos
6.2.3 Nós, da região
fronteiriça ampliada

6.2.4 Nós, semelhantes
implícitos


Conclusões

Anexos

Referências




2 Contextos de Inserção do Objeto da Pesquisa


Os espaços de fronteiras há muito têm interessado estudiosos e pesquisadores por estimularem os povos na busca pelo novo, pelo desconhecido, por despertarem a curiosidade, o ímpeto de ampliar territórios, conhecimentos e realizar intercâmbios. Escrito há mais de 50 anos pelo historiador Fernand Braudel, o livro O Mediterrâneo14 é um dos estudos mais curiosos e ricos existentes sobre o tema fronteira. Águas singradas por embarcações provenientes dos distintos povos oriundos dos países que o cercam, o Mar Mediterrâneo tornou-se palco de acontecimentos e de conquistas iniciadas com o período das navegações, por volta de 1500. Espaço onde culturas se entrelaçam, línguas e moedas se confundem, ambiente opulento e cobiçado até por habitantes de terras mais longínquas, aquele espaço é cenário de disputas, guerras, conquistas, mas sobretudo de trocas.

A reflexão sobre "ser" fronteira é trazida por Boaventura de Sousa Santos, ao analisar o caso de Portugal. O autor considera a cultura daquele país como uma cultura fronteiriça, pois, segundo ele, no trajeto histórico cultural da modernidade, os portugueses foram tanto o europeu como o selvagem, tanto o colonizador como o emigrante. Ele destaca que "a zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contactos se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias, sendo pouco susceptível de globalização" (SOUZA SANTOS, 1996, p. 153). Ao prosseguir na análise, salienta que, na relação de Portugal, com os países africanos e o Brasil, o país europeu serviu aos demais como passagem de acesso às culturas centrais. Ao tecer considerações a respeito dos tempos atuais, o sociólogo comenta que:

O contexto global do regresso das identidades, do multiculturalismo, da transnacionalização e da localização parece oferecer oportunidades únicas a uma forma cultural de fronteira precisamente porque esta se alimenta dos fluxos constantes que a atravessam. A leveza da zona de fronteira torna-se muito sensível aos ventos. É uma porta de vai-vem, e como tal nem nunca está escancarada, nem nunca está fechada (SOUZA SANTOS, 1996, p.154-155).

Pode-se afirmar que, em um mundo globalizado, atravessado por trocas de informações, pessoas, mercadorias etc., as permutas se dão não apenas em pontos que estão dispostos lado a lado, mas, também (e cada vez mais) entre pólos longínquos. A discussão trazida por Boaventura de Souza Santos está voltada para a questão da cultura, no caso específico, reforçada pelo elemento lingüístico, já que, nos países colonizados por Portugal, a língua do colonizador assumiu uma posição predominante.

Outro estudo sobre o tema, de indiscutível valor, foi realizado na divisa entre Estados Unidos e México (CANCLINI, 1990), salientando o convívio entre povos de nacionalidades distintas, onde os intercâmbios ocorrem, muito embora existam restrições comerciais e políticas entre os dois países, e movimentos de grupos americanos ultra-nacionalistas, contrários à integração. Nem as divisas físicas, como as estabelecidas através da construção de cercas de arame ou muros de concreto, nem as culturais, como a língua - o espanhol falado de um lado, o inglês, falado de outro, além das indígenas, naturais daquela região e mais usadas pela população da periferia - impedem que os habitantes locais realizem trocas e intensifiquem o trânsito de um lado para outro. Ali, configura-se um processo dinâmico de hibridização, influenciado, também, pelas ações de entrelaçamento que se fortalecem e se ampliam por todas as partes, divulgadas pelos meios de comunicação.

No entanto, ao discutirmos questões que envolvem o processo de hibridização cultural, no continente latino-americano em especial, faz-se necessária a composição de um quadro mais complexo, envolvendo o processo de livre comércio e integração econômica e sociocultural, até mesmo porque podemos dizer, concordando com Canclini, que a América Latina é um "continente de intensas hibridizações, mas com baixa integração" (CANCLINI, 1997b, p. 21).

topo

2.1 Fronteiras vivas

As fronteiras estão presentes no imaginário social como limite, aparecendo como naturalizadas. Entretanto, elas são mais do que isso, pois, ao mesmo tempo em que impedem, permitem a passagem (MÉLO, 1997, p. 69)15. E o que queremos discutir, neste momento, é a questão fronteira vinculada à territorialidade, onde os pontos de contato estão dispostos lado a lado e, neste sentido, o conceito de fronteira precisa ser repensado.

A expressão fronteira origina-se no latim frontaria, significa o território que ficava em frente ou nas margens (ZIENTARA apud GUAZZELLI, 1997, p. 164). Se partirmos de uma avaliação mais ampla, é possível concordar, em parte, que os espaços selecionados para o estudo aqui apresentado configuram-se em fronteiras. No entanto, a análise vai além disto, já que as linhas demarcatórias não correspondem a divisões naturais e, sim, a limites estabelecidos a partir de acertos, firmados entre governos nacionais. Grosso modo, o que se entende como fronteira constitui-se numa delimitação territorial que irá definir, no caso em questão, onde se encerra um país e onde se inicia outro, estipulando a interrupção do poder de um Estado num determinado território.

A concepção tradicional é de fronteira como barreira, limite, corte, descontinuidade. No entanto, esta visão, dadas às transformações mundiais em curso, torna-se parcial, reducionista, e, por isso, faz-se necessário buscar novos referenciais para o tratamento do tema:

el aspecto central del análisis de la dinámica fronteriza deja de ser la existencia de una región o una identidad cultural fronteriza y adquiere relevancia el estudio de prácticas sociales que logran articularse desde las diferentes sociedades nacionales. Esta perspectiva posibilita el análisis histórico de las relaciones de vecindad sin dejar de lado las consecuencias jurídico-políticas e ideológicas que una línea corpóreamente inexiste - como el límite16 - pueda tener en el ámbito internacional y local (CHINDEMI, 2000, p. 78).

Alguns aportes funcionam como guias para compreender o avanço conceitual de fronteira. Entre eles, pode-se citar o de fronteiras-zonas que se constituem na organização do espaço pelo homem, caracterizando-se por extensas áreas inabitadas, como florestas e montanhas. Por outro lado, o conceito de fronteiras-faixas, apresenta a fronteira como muralhas e muros, e o de fronteiras-linhas, como demarcações que podem dividir organizações de grupos humanos em qualquer escala. É preciso levar-se em conta que, como as relações internacionais são redimensionadas, conseqüentemente, "vai mudando rápida e progressivamente o conceito tradicional de fronteira e as organizações espaciais vão se tornando cada vez mais internacionalizadas" (LEHNEM; JACOBS; COPSTEIN; GONÇALVES, 1990, p. 162). Por exemplo, o conceito de zonas de fronteira, apresentado por Sarquis, traz uma visão um pouco mais condizente com a realidade em questão. O autor as define como "amplas franjas territoriais de um lado e de outro das linhas de demarcação geográfico-políticas, no qual convivem populações com particularidades próprias que as diferenciam de outras partes dos territórios nacionais" (SARQUIS, 1996, p. 60).

O que surge em lugares como Uruguaiana-Libres e, principalmente, em Livramento-Rivera, é o que Iturriza, citado por Padrós (1994, p. 69), denomina de fronteiras-vivas, permeáveis, de tensão ou acumulação. São zonas isoladas e afastadas dos centros dinâmicos nacionais, com escasso e desigual desenvolvimento econômico com relação ao país, sem autonomia para tomar decisões locais, mas que têm recursos naturais pouco explorados e pouco conhecidos. Possuem deficientes vias de comunicação e acesso e estão próximas de áreas de países vizinhos de conformação humana e geográfica semelhantes.

Nestes espaços, inexistem, com freqüência, fronteiras-barreiras já que há ação e interação dos agentes fronteiriços, estimulando dinâmicas específicas informais. É indiscutível que os enlaces que ocorrem entre os pontos de contatos, principalmente urbanos, entre os países do Extremo Sul da América Latina propiciam interações. Tais fronteiras, como ressalta Grimson (2000, p. 19), consideradas inter-estatais, não são naturais nem necessariamente produtos de acordos históricos que surgiram de relações de forças entre os Estados e suas relações com as populações locais; as identificações diferenciadas que surgem e se negociam na fronteira se vinculam a interesses das populações locais e as suas necessidades de organização social.

As regiões escolhidas para o presente estudo possuem características similares no que diz respeito a sua configuração geográfica. Nelas foram instaladas comunidades urbanas que, com a dinâmica que lhes é peculiar, estabelecem intercâmbios constantes; além do que, pela constituição do MERCOSUL, elas tornaram-se cenário das passagens de trocas oficiais, importações e exportações, definidas a partir dos acordos econômicos, instituídos pelo MERCOSUL.

Como demonstram os eventos históricos, a região foi palco de inúmeros conflitos, cujo pivô foi a demarcação territorial. De acordo com Sarquis (1996), o Nordeste da Argentina apresenta uma situação fronteiriça particular, posto que as províncias de Misiones e Corrientes são as únicas em contato com um país de fala não hispânica, o Brasil.

Esta região é o resultado de um processo de colonização (missões jesuíticas), de despovoamento e povoamento posterior (correntes imigratórias européias, asiáticas e de países vizinhos, sobre uma população nativa guarani que foi se dissipando através do tempo), onde vivia e, às vezes, sobrevivia, um amplo espectro de culturas e línguas (SARQUIS, 1996, p. 63).

O mesmo ocorreu nos espaços territoriais que ligam o Brasil ao país vizinho, Uruguai, onde foi criada uma vila, hoje Rivera, para conter o avanço do império brasileiro.

Como ressalta Milán:

a atual zona de fronteira Uruguai-Brasil foi ponto de referência para a disputa política e militar entre interesses muito poderosos (a linha fronteiriça discutida pelo Império Português e o Império Espanhol mudou de lugar em sucessivas oportunidades); muitas vezes o povoamento de estâncias e fazendas, ou a fundação de vilas e fortes, foi o modo de reivindicar a soberania dos territórios. O enfrentamento político-militar foi sucedido pelo contato lingüístico entre o português e o espanhol, as línguas que colonizadores e soldados levavam consigo. (MILÁN, 1996, p. 121-122).

Nestes espaços, registraram-se sucessivos movimentos de conflitos e acertos cooperativos. Desde o início da colonização, os rios que compõem a Bacia Platina constituíram-se em vias de comunicação visadas pelas grandes potências européias da época e que influíram em vários eventos, como a Guerra do Paraguai (1865-1870). No episódio, Brasil, Uruguai e Argentina uniram-se com o objetivo de derrotar Solano Lopes, dirigente paraguaio que, estimulado por interesses ingleses, deflagrou um acirrado conflito na região com o intuito de ampliar o território paraguaio. Esta tensão teve como um dos marcos a Retomada de Uruguaiana, ocorrida em 1865, quando, com o auxílio de tropas uruguaias e argentinas, o Brasil reintegrou a cidade ao seu território.

Hoje, em um período denominado de Consolidação do MERCOSUL, vemos novamente a região da fronteira ser palco de acontecimentos que refletem os acertos e os desacertos dos governos nacionais do Brasil, Argentina e Uruguai. Para Bentancor, para quem o espaço físico da fronteira está compreendido pela superfície onde se dá a superposição de elementos socioculturais e intercâmbio econômico legal e ilegal. O autor considera que "a efetiva integração socioeconômica, com o conseqüente aumento de intercâmbio, se encontra obstaculizada pela situação política interna dos países da Latino América" (BENTANCOR, 1995, p. 97-98).

Favorecidos pela região platina, outros vínculos culturais aproximam as comunidades das cidades da fronteira do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Hábitos como beber chimarrão e comer churrasco, fortemente cultivados pela população fronteiriça, estão entre os aspectos culturais que se transformam em amarras de união e interação, sendo reforçados pelas músicas e danças gauchescas e pelos laços de família, que nas idas e vindas entre um país e o outro, e com o passar dos tempos, criaram-se e intensificaram-se.

Pelas flutuações monetárias que ora beneficiam os moradores de um lado da fronteira, ora os do outro, o espaço torna-se propício ao comércio de produtos fabricados nos países envolvidos, estimulando, também, a comercialização de mercadorias provenientes de outras partes do mundo, como da China e de Taiwan. Este é um dos motivos pelos quais as regiões fronteiriças atraem imigrantes, entre eles os palestinos, a quem é atribuído um grande tino comercial.

Muito embora existam semelhanças entre as duas áreas estudadas, há elementos peculiares a cada uma delas. Até mesmo porque, em um dos espaços selecionados, a divisa do Brasil se dá com o Uruguai e em outro com a Argentina. E, por mais que estejam carregadas de traços similares, as identidades nacionais são distintas e as relações entre elas se dão de forma singular e merecem atenção em separado.

Se examinarmos o caso de Uruguaiana-Libres, temos ali um acidente geográfico que pode ser identificado como fronteira-barreira, no entanto, há muito tempo este tipo de elemento não se configura como um limitador. Com os avanços tecnológicos, passou a ser possível a transposição desta barreira através da construção de pontes e dos laços criados pelo homem, estabelecendo uma ligação permanente entre as duas cidades, onde o fluxo de pessoas, de mercadorias e de veículos é uma constante.

Vale ressaltar que, no exemplo aqui analisado, diferente do que ocorre no espaço do Mediterrâneo, onde o limite é o horizonte das águas, em Uruguaiana-Libres é visível o território que pertence a cada um dos países que se avizinham, pois a outra margem do rio deixa pairar o sentimento de bloqueio, de limite. No entanto, nem assim o homem se sente acuado e, na tentativa de novas conquistas, por idéias expansionistas e para conviver com seus semelhantes, vê-se motivado a superar os desafios que a natureza lhe impôs, criando alternativas para possibilitar a aproximação.

Uma das formas de reforçar esta aproximação é a criação e o fortalecimento de blocos econômicos, movimento presente em todo o mundo e que envolve questões de diversas naturezas, como as que passam pelo ponto de vista econômico e financeiro, ultrapassando os poderes dos Estados Nacionais.

Assim, conforme explica Ianni, "surge uma transformação quantitativa e qualitativa do capitalismo além de todas as fronteiras, subsumindo formal ou informalmente todas as outras formas de organização social e técnica do trabalho, da produção e reprodução ampliada do capital" (1996, p 17). De acordo com o sociólogo, toda economia nacional, seja qual for, tornou-se província da economia global; o "modo capitalista de produção entra em uma época propriamente global" (IANNI, 1996, p. 17).

Em se tratando de MERCOSUL, o discurso integracionista é forte. Porém, como nos demais blocos econômicos, está pautado em acordos econômicos. Se a idéia é alcançar êxito em um processo que vise a integração entre os povos, fortes alterações deverão acontecer, como o que se passou com o bloco europeu, embora o exemplo não corresponda ao ponto ideal, sonhado e defendido por iniciativas integracionistas.

Os avanços terão que ocorrer em mais de uma matriz, que não só a pautada pelos acertos econômicos, mas envolvendo entendimentos nas áreas social e cultural, de modo a se configurar em um verdadeiro processo de integração. De acordo com Padrós, a idéia de integração refere-se a uma projeção que pretende ampliar as potencialidades e recursos dos países envolvidos que passam a integrar uma unidade dimensionalmente ampliada.

O autor entende que esse processo não é, simplesmente, um somatório de possibilidades, mas a criação de um novo espaço de interação e negociação. Por outro lado, ressalta que "integrar não deve significar perda de identidade nacional, e sim, contato com outras identidades nacionais" (PADRÓS, 1994, p. 66). Seguindo esses cuidados, a integração pode ser o resultado de uma negociação equilibrada, dependendo, para isso, da existência de uma vontade política de todos os envolvidos. E, neste aspecto, a vida na fronteira torna-se uma peça chave, podendo auxiliar na composição de uma mudança que leve à efetiva existência de um elemento novo, integrado de fato e de direito.

topo

2.2 Pólos de integração

Devido ao distanciamento que as zonas fronteiriças aqui trabalhadas têm, com exceção do Uruguai, do contexto nacional do qual fazem parte, elas se constituem em espaços periféricos, margens, bordas de um todo. O Brasil e a Argentina são países com grandes dimensões onde os espaços de fronteira estão a quilômetros de distância do governo central, pólos de tomada de decisões da vida nacional.

Entretanto, se subdividirmos o Uruguai, perceberemos o quão próximas suas fronteiras estão da sede do governo federal por sua pequena dimensão territorial, em relação aos outros dois países. Tal fato, no entanto, não impede que a vida do homem da região da fronteira, que habita as áreas limítrofes entre os países citados, apresente semelhanças.

Como bem observa Padrós, o homem fronteiriço possui uma mentalidade própria à integração, pois para ele as noções de espaço e nacionalidade muitas vezes são tão abstratas quanto a idéia da existência de uma linha demarcatória que o separa do outro país. O autor ressalta que a fronteira integracionista não resulta de uma ação planejada, pois é anterior a isso.

As fronteiras vivas, caracterizadas por uma presença demográfica relativamente importante e por uma estrutura social complexa, "manifestam uma integração informal que sobrevive às conjunturas políticas de fechamento e de corte" (PADRÓS, 1994, p. 76).

A grande extensão geográfica e a diversidade de correntes migratórias que, desde a época da colonização, instalaram-se nos países analisados, sobre a base de uma população aborígene, trouxeram particularidades aos processos de evolução das economias regionais e nacionais. As trocas e o trânsito na região do Prata ocorreram desde os primeiros povos que habitaram aquele espaço. Os momentos de tensão sempre estiveram presentes, mais fortes em determinadas épocas. Entretanto, até mesmo através destes movimentos sociais, os intercâmbios foram estimulados e as trocas ampliadas.

A preocupação em resolver os problemas locais levou o homem da fronteira a criar mecanismos para resolver suas dificuldades e atender suas necessidades: "las poblaciones de localidad fronteriza de dos estados nacionales pueden tener más contactos sociales entre si que con sus respectivas metrópolis, pero esto no modifican en si mismo - contra lo que a veces se afirma - la adiscripción nacional de sus pobladores." (EVANS-PRITCHARD apud GRIMSON, 2000, p. 17).

Desta forma, o que se verifica é que não há razões intrínsecas para que as fronteiras significativas dos sistemas sociais sempre coincidam com as fronteiras culturais. Exemplos disto, encontramos em diversos setores da sociedade de Uruguaiana-Libres e Livramento-Rivera.

Os habitantes desses espaços não se sentiram constrangidos em trocar relações pelo fato de serem componentes de nações distintas. Indiferentes a isto, interagiram e constituíram espaços próprios comuns, invadiram terras internacionais, trocando informações, produtos, relações, configurando um novo território, criando normas e articulações definidas para atender àquelas pessoas, transgredindo determinações provenientes de instâncias situadas em círculos distantes, em áreas externas a elas.

Em Livramento-Rivera, as articulações estabelecidas entre seus moradores abrangem vários aspectos e acordos vão sendo firmados sem o menor constrangimento entre os municípios e, principalmente, através das instituições, que transformam o espaço em verdadeiras fronteiras abertas17. Em algumas situações, as autoridades representativas dos órgãos oficiais em nível nacional e estadual vêem-se obrigadas a "fechar os olhos", não por estarem coniventes com o desrespeito às leis, mas pelo fato de conhecerem a realidade local, compreendendo o quanto acertos informais são vitais para o desenvolvimento da comunidade fronteiriça.

O próprio conceito de fronteira é empregado de modo diferenciado por quem não é morador desse tipo de espaço e por um habitante desses locais. Para aqueles que vivem nestes lugares, a linha divisória é tênue e não passa necessariamente pela demarcação geopolítica. Eles se dizem "da fronteira"18, incluindo-se em uma área diferenciada e ampla e deixando para regiões mais distantes, além das zonas urbanas, a responsabilidade pelos contornos nacionais.

Por sua vez, em alguns momentos, os valores nacionais de cada um são chamados em defesa de uma identidade que o ligue ao seu país, como é o caso de disputas futebolísticas entre times do Brasil e do Uruguai. O policiamento local vê-se obrigado a fechar as principais passagens das ruas que ligam uma cidade a outra de modo a evitar confrontos entre torcedores mais ferrenhos.

Entretanto, até mesmo estes confrontos servem para demonstrar como o que se passa ali, onde os torcedores do Brasil são mais numerosos de um lado e torcedores do Uruguai preponderam do outro, é um processo interativo. Em que outros espaços esta rivalidade ficaria tão manifesta e controlada ao mesmo tempo? Em que outro espaço esta rivalidade teria um tempo definido de duração, 90 minutos? Se, por um lado, cada um quer demonstrar a superioridade do seu país sobre a outra nação a partir das equipes de futebol, por outro é o lugar onde este tipo de manifestação pode ocorrer sem que os desfechos sejam graves ou negativos. Na verdade, são "irmãos-hermanos" que se encontram para um "confronto fraterno".

Já em Uruguaiana e Paso de Los Libres, há mais resistência com relação aos acertos, mas eles são inevitáveis. Os pactos entre os dois municípios são em áreas mais específicas, como a comercial, e implicam acordos necessários para a sobrevivência, por exemplo, do mercado local. O que se verifica na fronteira destas duas cidades é que, por Uruguaiana ser considerada como um grande Porto Seco, conflitos ligados ao transporte de cargas por caminhões do Brasil para a Argentina e aos outros países do Cone Sul têm seu desfecho naquela localidade, envolvendo as duas aduanas, hoje unificadas. As tensões ali registradas, muitas vezes, são resultado de problemas existentes nas políticas nacionais dos governos, refletidas nos acordos de ordem internacional entre seus dirigentes, com relação à exportação e à importação de produtos.

Nestes municípios, os choques são mais freqüentes e não se limitam aos confrontos esportivos, muito embora eles ocorram sempre que há um enfrentamento entre times brasileiros e argentinos, quando os torcedores de Libres fazem carreatas ao redor da praça central de Uruguaiana, provocando os representantes da torcida brasileira na derrota de uma equipe do Brasil. Já o inverso não é permitido. A polícia argentina proíbe a passagem dos torcedores brasileiros para o lado argentino, interditando a ponte.

Segundo depoimentos de uruguaianenses, a polícia do país vizinho é bem rígida quando um brasileiro está envolvido em um incidente do lado argentino. Até mesmo quando se trata de questões relativas ao rio Uruguai, a Guarda Costeira argentina é severa com os brasileiros que cometem infrações, como passar para as águas argentinas, chegando a prendê-los e deixando-os incomunicáveis.

O mesmo ocorre quando acontece um choque entre um automóvel dirigido por brasileiros em Libres. Há dificuldades para retirar o veículo e a autuação é lavrada na hora, com a exigência do pagamento da multa naquele instante e com moeda argentina. Estes são apenas alguns exemplos, citados pelos habitantes locais, de situações de conflito.

Este tipo de relacionamento, onde as diversidades da legislação de cada país são ressaltadas, não deixa de demonstrar que há uma interação permanente entre as partes envolvidas e que o que mais contribui para os desacertos são as decisões que são tomadas em nível nacional, por governos centrais, que ignoram a situação peculiar dos espaços fronteiriços.

Por outro lado, movimentos são criados com o intuito de aproximar a comunidade fronteiriça 19. Um deles é a Comissão Binacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis Paso de Los Libres - Uruguaiana, instituição fundada pelos moradores de Uruguaiana e Paso de Los Libres preocupados com a preservação ambiental. Esta organização elege a cada dois anos seu presidente. A ocupação do cargo é alternada por um brasileiro e um argentino e a sede de atuação da entidade se desloca para a cidade da qual o dirigente é originário, Uruguaiana ou Libres.

As batalhas travadas pela Comissão em favor do ambientalismo fazem com que seus membros recorram aos governos municipais, estaduais e federais, com o objetivo de transpor as barreiras administrativas, políticas e de legislação em prol da natureza da região e da comunidade local. As questões relativas aos recursos hídricos são as mais importantes para a entidade devido à existência na região de um grande lençol freático, que se estende por uma área abrangida pelos quatro países do MERCOSUL20.

Situações semelhantes ocorrem em Livramento-Rivera. Nestas cidades, uma entidade de cunho não-governamental, presente em vários países dos cinco continentes e que tem como objetivo trabalhar com jovens e crianças, nas áreas de educação, esporte e lazer, recebe uma denominação bem peculiar. A Associação Cristã de Moços / Asociación Cristiana de Jóvenes (ACM/ACJ Fronteira) atua nas duas cidades e conta com o apoio de voluntários brasileiros e uruguaios. Indiferente à linha divisória entre os dois países, esforços são somados e dificuldades são enfrentadas para que, até mesmo suas sedes regionais, localizadas em Porto Alegre e Montevidéu, compreendam as situações com as quais ela se defronta.

Quando da prestação de contas, a ACM/ACJ Fronteira apresenta os resultados nas três moedas correntes em Livramento-Rivera: o real, o peso e o dólar. Os administradores, distantes da comunidade fronteiriça têm dificuldades em aceitar a realidade informada pelos coordenadores locais. Da mesma forma, colaboradores de ambos os lados da divisa não medem esforços, buscando ultrapassar os empecilhos decorrentes das leis municipais, estaduais e nacionais, causadores de entraves a projetos direcionados aos habitantes do lado brasileiro e uruguaio, firmando convênios e acordos para atender à comunidade local indiscriminadamente.

Estados que se propõem integracionistas deveriam priorizar nas suas análises o agente local fronteiriço e as relações por ele estabelecidas. Sua vivência pode auxiliar na compreensão do que venha a ser de fato e de direito um processo de integração e não chegar "con fuerzas renovadas a las fronteras a partir de la 'integración'" (GRIMSON, 2000, p. 12), exercendo um controle inédito sobre as populações locais, não raras vezes desconhecendo e anulando as histórias e tradições locais. Segundo Fedatto, "o processo de integração visando a uma sociedade mundializada, devia começar na fronteira, onde seus habitantes já aprenderam o respeito pelo outro" (1996, p. 117).

Tanto as relações de irmandade, generosidade ou as assimetrias fazem-se presentes em jornais e rádios locais que relatam o cotidiano das comunidades fronteiriças, traduzidas nos discursos de borramento de fronteiras, como o discurso político, o da integração. O estudo que analisa o espaço fronteiriço de Pasadas (Argentina) e Encarnación (Paraguai) através de dois jornais locais, um de cada uma das cidades, destaca que para algumas coisas a fronteira existe e para outras não. O autor conclui que "buscar subrevivir, y quizá ascender socialmente, implica para ellos (os fronteiriços de Pasadas e Encarnación) maximizar los benefícios de la frontera (...) el hecho de beneficiarse de la frontera no implica que consideren al otro como enemigo" (GRIMSON, 2000, p. 228-229).

Portanto, uma das técnicas que possibilitam a análise de como o elemento fronteira está presente na vida dos habitantes dos espaços de divisas entre países é a realização de entrevistas sobre o que se passa no dia-a-dia, e que, geralmente, conquista espaço na mídia local. Desta forma, é possível verificar quais são os movimentos do homem fronteiriço para estabelecer um espaço próprio, peculiar aos habitantes das áreas limítrofes.

Entrar na realidade da região através do contato direto com seus habitantes, observando os personagens no contexto, ouvindo as vozes e falas e lendo os textos trazidos pelo jornal impresso local, são exercícios que auxiliam a observação de que a relação não é de todo harmônica, mas a presença da fronteira torna o espaço peculiar e ímpar.

topo

2.3 Caracterização geral das cidades

A concepção do homem fronteiriço sobre a fronteira é distinta da que possui um habitante de pontos mais distantes. Quem convive ao lado do outro, cruzando as terras dele como se fossem suas, estreitando laços de parentesco e amizade com este "irmão-hermano", pensa de maneira própria a questão fronteiriça. O outro não é um desconhecido e sim aquele que faz parte, que participa das ações cotidianas; aquele que está presente em todos os momentos que se desenrolam no espaço social, auxiliando na solução de problemas, no enfrentamento de dificuldades, estas muito semelhantes, alguém que é mais fácil de ser compreendido. Entretanto, embora seja este próximo, conhecido e vizinho, inevitavelmente continua sendo o outro.

Os indivíduos que moram do outro lado são tratados como distintos, mas formam um grupo de estranhos "diferentes". Existem diferenças, mas estas, pelo intenso convívio, passam a ser reconhecidas pelos componentes da comunidade, os fronteiriços. Marcas são criadas pelo grupo e assimiladas por seus membros, tornando-se válidas em um dos casos para uruguaianenses e libreños e no outro, para santanenses e riverenses.

É possível perceber movimentos de aproximação, mas eles ocorrem também no sentido inverso, isto é, em algumas ocasiões o chamamento mais forte descola os dois lados, fazendo com que a ligação ressaltada seja de cada um com seus irmãos nacionais. É quando os uruguaianenses e santanenses se aproximam da condição de gaúchos e brasileiros, e os habitantes do outro lado se mostram como libreños, correntinos, argentinos, ou riverenses, orientais, conforme o espaço, dependendo do ponto em questão.

Ações de interação, intercâmbios e de integração efetiva existem nos espaços de fronteira entre os habitantes do lado de cá e do lado de lá e se dão a favor ou contra as decisões tomadas nas esferas governamentais, longe da vida fronteiriça. É condição de sobrevivência estabelecer acertos locais válidos para o homem que habita lugares periféricos dos territórios nacionais.

* * *

Uruguaiana-Paso de Los Libres, a primeira brasileira e a segunda argentina, e Santana do Livramento-Rivera, brasileira e uruguaia, respectivamente, são cidades interioranas, com um elemento forte que as identificam: localizam-se nas linhas demarcatórias dos territórios brasileiro-argentino e brasileiro-uruguaio, estabelecendo limites em níveis urbanos.

Embora pertencente a países distintos, a região como um todo possui características semelhantes no que diz respeito à sua configuração geográfica. Os municípios estão situados em uma área plana, onde a pecuária e a agricultura são as principais atividades econômicas. A região possui vegetação onde predominam as estepes e pradarias, com um clima tropical semi-árido, tendendo a seco pela irregularidade das massas tropicais. Assistidas pela hidrografia da Bacia Platina, da qual faz parte o Rio Uruguai, as quatro cidades são componentes da Planície Platina.

O ambiente configura-se como peculiar já que representa um espaço geopolítico reconhecido e respeitado mundialmente como linhas de contorno entre os territórios brasileiro e argentino em um ponto, e em outro, bem próximo, entre o território brasileiro e uruguaio, espaços estes que delimitam a soberania e o poder de cada um dos três governos.

Em um primeiro momento da colonização latino-americana, realizada por portugueses e espanhóis, ora a região passava às mãos da corte portuguesa ora às mãos da coroa espanhola, sofrendo fortes influências das duas culturas, além das nativas dos índios Charruas e Minuanos. Houve épocas, como o período compreendido entre 1580 e 1640, em que o território, hoje pertencente ao Estado do Rio Grande do Sul, esteve sob o domínio espanhol. Mas por bom tempo, até o final do período colonial, esteve submetido ao governo português, do qual sofreu maior influência, até a independência do Brasil.

Acordos e tratados foram sendo firmados pelos governos do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai com o objetivo de minimizar os atritos comerciais e alfandegários que ocorriam entre eles e também com os demais países latino-americanos. Uma das iniciativas foi a criação da Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC), em 1960, organização que chegou a reunir 11 países latino-americanos. Em 1980, surge a Associação Latino Americana de Integração (ALADI). O MERCOSUL foi assinado mais recentemente e é o que vigora.

Entretanto, como o principal foco destes acordos é sempre comercial, as questões ligadas à sociedade e à cultura receberam pouca atenção. Foram relegados a um segundo plano, ou menos que isso, nas articulações de tais acordos, aspectos locais - como os vividos pelos habitantes fronteiriços, onde já se estabelecem processos de intercâmbio e interação constante, como é o caso de Uruguaiana-Paso de Los Libre e Santana do Livramento-Rivera, apesar de relevantes para entender os procedimentos levados em curso para o sucesso de tais acertos.

A cidade de Uruguaiana, cuja denominação significa Uruguá (concha, caracol, na língua Tupi), y (rio, água) e Ana (nome da santa padroeira da cidade), comemorou, em 2000, 147 anos. Com cerca de 126 mil habitantes21, é considerada o Maior Porto Seco da América Latina, tal é o número de caminhões de carga que circula diariamente pela Ponte Internacional. A Ponte da Integração, como é chamada, foi inaugurada em maio de 1947, e sobre ela são levados22 e trazidos produtos diversos como grãos, máquinas, peças automotivas etc., para toda a região que compõe o Cone Sul.

Localizada na fronteira entre o Brasil e a Argentina, Uruguaiana está distante de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, 634 quilômetros e tem como cidade vizinha mais próxima, Paso de Los Libres, cidade fronteiriça argentina com mais de 150 anos. Elas têm como divisa um acidente geográfico, o Rio Uruguai.

Apesar de estar vivendo um momento delicado23, resultado de incertezas econômicas em proporções regionais, nacionais e até mesmo internacionais, o setor agropecuário concentra as atividades econômicas em Uruguaiana. Embora, do lado brasileiro, a cidade possua uma média de mais de 6 mil desempregados, sua situação ainda é melhor do que a da cidade vizinha. Nessa, habita uma população flutuante composta de estrangeiros como espanhóis e americanos que vieram em função das obras do gasoduto, que está sendo construído para transportar gás combustível da Venezuela para o Brasil, via Argentina.

A população de Paso de Los Libres tem uma qualidade de vida bem pior do que a de Uruguaiana. O município argentino está empobrecido, com uma aparência de abandono. Situada na Província de Corrientes, cuja capital recebe o mesmo nome, Corrientes, Libres localiza-se no Nordeste da Argentina, uma das regiões mais pobres daquele.

A Província de Corrientes está falida e possui uma dívida interna maior que a dívida externa do Paraguai. No ano de 2000, sua administração sofreu intervenção do governo nacional que designou um representante para colocar fim à crise financeira da Província. Uma das medidas adotadas foi a criação de uma moeda, denominada Certificación de Obligaciones de la Província de Corrientes (CECACOR), um bônus destinado a pagar o funcionalismo público que estava com seus salários atrasados.

Devido à situação cambial da época, os correntinos, como são chamados os habitantes de Corrientes, passaram a comprar inclusive gêneros alimentícios em Uruguaiana. Para manter as vendas em um patamar mínimo, os comerciantes locais foram obrigados a aceitar a moeda, atendendo a população que para cá se deslocava.

As relações entre os brasileiros e seus vizinhos do Prata, principalmente argentinos, são descritas, com freqüência, em um tom em que predomina a rivalidade24:

Diferentemente do restante da América Latina, onde imensos vazios separavam as populações de origem castelhana e lusitana, no Prata as frentes de exploração e assentamento colonial se puseram em contato direto. Nas férteis terras banhadas pelos rios Paraná e Paraguai e por seus afluentes disputaram-se os limites de cada Império. Essa rivalidade se transferiu posteriormente às entidades nacionais da região, responsável pelo contexto inamistoso que caracterizou as interações sub-regionais até praticamente o final deste século XX (CORRÊA, 2000, p. 29).

Por outro lado, há momentos de aproximação como o que uniu as forças brasileiras e argentinas, que lutaram ombro a ombro com o objetivo de manter o status quo ameaçado pelo expansionismo paraguaio. Essa crise culminou com a Retomada de Uruguaiana.

Tais situações, contudo, ficam diluídas ou chegam ao esquecimento, o que corrobora as afirmações de Grimson de que: "A lo largo de la história, una sociedad cria incesantemente categorias identitárias. Las personas aprenden esas categorias el la vida social y las incorporan con sentido comun. Por lo tanto, tienden a creer que existiaran desde siempre" (GRIMSON, 2000, p. 42).

Isto se deve talvez até a geografia plana de Uruguaiana, cidade esparramada, tendo como um dos seus principais limites o rio Uruguai, cuja Ponte da Integração permite o fácil, embora nem sempre livre, acesso à Argentina. Aos olhos de um visitante, a sensação é de que a cidade está de costas para o país vizinho, voltando-se para o Brasil e guarnecendo a fronteira do inimigo, como ocorria no Brasil Colônia ou no início da República, quando as milícias dos estancieiros eram chamadas pelo governo central a resguardar a fronteira (PONT, 1983, p. 533).

Após uma observação mais minuciosa, verifica-se a presença constante de moradores de Libres, como é chamada a cidade argentina em Uruguaiana. A promoção constante de eventos culturais, esportivos e até mesmo militares estimula a interação entre brasileiros e argentinos.

Já em Livramento, como também é conhecida Santana do Livramento, residem cerca de 90 mil habitantes. O município está distante 495 quilômetros da capital do Estado gaúcho, e a 541 quilômetros de Montevidéu, capital uruguaia. A atividade agropecuária também é forte, muito embora o comércio de fronteira seja marcante para a cidade.

Livramento foi desmembrado de Alegrete em 1857. Do outro lado, no país vizinho, em 1862 é criada, via lei federal uruguaia, na coxilha de Santa Anna, Villa Ceballo. O lugarejo tinha como finalidade principal conter o temido avanço do império brasileiro nas linhas de fronteira (LAVIN, 1998) que haviam sido definidas no Tratado de Limites firmado entre os dois governos em 1851. Sua denominação é alterada mais tarde para Rivera, e em 1884 passa a ser a capital do novo Departamento com o mesmo nome.

Diferente de Uruguaiana-Libres, não há acidente geográfico que separe as duas cidades - Livramento-Rivera. O marco divisório geopolítico corre ao longo de uma rua e tem como espaço privilegiado o Parque Internacional, cortado pela linha limítrofe entre os dois municípios. Nele, as pessoas transitam naturalmente. Mesmo vestindo uniforme e desempenhando a função de resguardar a fronteira, os policiais brasileiros e uruguaios, que circulam de cada um dos lados do parque, mais parecem guardas de praça preocupados em preservar o patrimônio público.

Em Livramento, a primeira sensação é de que as duas cidades, Santana do Livramento-Rivera, estão abraçadas, impressão existente desde a criação de ambas (CAGGIANI, 1952, p. 68-69). O relevo da região onde foram construídas as duas é um pouco acidentado, uma coxilha. Assim, torna-se possível visualizar a cidade vizinha de prédios ou pontos um pouco mais altos, dando a sensação de que as construções - Logo ali! - fazem parte da mesma cidade. O trânsito de pessoas e de mercadorias se dá naturalmente, confundindo um observador desavisado, pois a linha de demarcação entre elas é tênue, facilitando o acesso de um lado para o outro.

Encontra-se nas calçadas, nos estabelecimentos comerciais, nas empresas de ambas, a presença de brasileiros e uruguaios que desfrutam inclusive de dupla cidadania (doble chapa, como são chamados), cujos pais ou avós têm nacionalidade distinta, um brasileira e outro uruguaia. E outros que possuem a Carteira Profissional Número Quatro, como eles mesmos dizem, e que permite ao cidadão uruguaio trabalhar legalmente em Livramento sem problema algum.

Como os habitantes locais ressaltam, tanto os brasileiros como os uruguaios, a compreensão daquele local só pode se dar a partir da união das duas cidades, o desenvolvimento delas só foi, e continua sendo, possível graças às ações conjuntas que nelas ocorrem, onde as deficiências de uma são supridas pela outra.

Mas, mesmo assim, em terras fronteiriças, questões envolvendo a identidade afloram. Nos dois casos, a lusitanidade e a espanidade que se faziam presentes no período do descobrimento, conquista e colonização latino-americana, deixaram suas marcas, como a língua. Nestes espaços, os cruzamentos de um lugar ao outro são constantes criando um ambiente de biculturalidade e bilingüismo, as pessoas dos dois lados usam sua língua principal, mas incorporam palavras da outra língua dos habitantes vizinhos e outros elementos que fazem parte da identidade: "De fato estão compartilhando várias identidades lingüísticas e territoriais" (CANCLINI, 1997 a, p. 82).

Com o passar dos tempos, após tantas disputas entre forças nacionais e regionais, cria-se um território diferenciado, como é comum aos espaços de fronteira (GUAZZELLI, 1997), onde se desenvolve uma cultura particular, tendo como um dos elementos constitutivos a língua, denominada nessas localidades, em particular, como "portunhol" ou "gauchês". Em um mundo globalizado, tais regiões chamam a atenção, pela interação que estabelecem confirmando que: "Processos que culminam em 'novas sínteses culturais' não estariam, enfim, isentos de conflitos e dinâmicas atravessados por questões estruturais de poder e dominação" (COGO, 2000, p. 122).

Com relação a estas interações culturais, cabe ressaltar que há mais de 60 mil árabes25 no Rio Grande do Sul, um grande número, povoando os espaços fronteiriços com os países do Prata. A comunidade árabe-palestina é bastante forte na fronteira. Tanto em Uruguaiana-Paso de Los Libres como em Santana do Livramento-Rivera o comércio direcionado para os moradores que habitam o outro lado da linha divisória, está praticamente nas mãos de integrantes dessa comunidade que, mantêm seus costumes, ocupam brechas e inserem-se na sociedade local. Sua ligação não está limitada ao comércio, atuam como advogados, médicos, políticos, empresários, nos meios de comunicação, na literatura, enfim, nas mais variadas áreas. É um grupo diferenciado, pois seus hábitos não são tão semelhantes aos já adotados pelos uruguaianenses-libreños, santanenses-riverenses. Distinguem-se através das vestimentas, do sotaque, nos traços e na fala. Com freqüência, referem-se à terra natal e ao desejo de retorno à pátria. Mas estes detalhes poderão ser vistos mais claramente em momento oportuno.

topo

2.4 Jornalismo e mídia impressa

A pesquisa em Comunicação permite a realização de um trabalho investigativo, levando em consideração todos os atores envolvidos no processo comunicacional. Se até bem pouco tempo eram comuns análises parciais dos meios de comunicação - sua produção, seus textos, sua audiência, elemento este que permaneceu esquecido longo tempo -, atualmente, esta proposição foi ampliada. Hoje, são realizados trabalhos de pesquisa que examinam o ambiente social e histórico em que os elementos do Campo da Comunicação estão inseridos, permitindo análises mais aprofundadas e/ou abrangentes, tendo em vista observar contextos também estruturados de forma mais complexa, influenciando as práticas onde os Campos Sociais se conectam e criam áreas de interseção.

Neste estudo, parte-se do pressuposto que, cada vez mais, as pessoas iniciam sua jornada diária ouvindo o noticiário radiofônico matutino, estruturando suas rotinas a partir do que é transmitido pelas ondas do rádio. Perseguindo a posição de "bem-informados", "esclarecidos", os indivíduos buscam por notícias, ligando o televisor ainda de manhã cedo, sintonizando-o nos telejornais. Uma rápida olhada nas manchetes dos jornais impressos, ou nas informações disponíveis na Internet, fazem parte do passo seguinte, ou, porque não dizer, da rotina obrigatória.

As questões, trazidas pelos noticiários, passam a compor o leque de temas que serão discutidos no ambiente familiar e no trabalho, ou em rodas de amigos, nos clubes, nos bares e nas praças, retomando e fortalecendo a comunicação interpessoal.

Quem não sabe o que se passa no mundo está desconectado e, assim, fora da vida em sociedade, da realidade. Estar "atualizado" é uma cobrança permanente e quem não demonstrar sua ligação com o que é pautado pela mídia perde credibilidade junto à comunidade. Mostrar que sabe o que se passa pelo mundo afora passou a ser condição fundamental nas relações de sociabilidade contemporânea.

Entendendo os cruzamentos e a complexidade dos processos sociais, estudiosos como Armand Mattelart (1994), debruçam-se sobre os aspectos econômicos, políticos e culturais que neles influenciam, com o intuito de compreender como se forma o tecido social, permeado pela comunicação. Os meios de comunicação deixaram de serem vistos - ingenuamente - como o de meros transmissores de informações e passaram a ser considerados de extrema importância à medida que eles contribuem para definir os caminhos e os movimentos desenvolvidos pela sociedade.

A mídia configura-se em instrumento de visibilidade social; em elemento de um jogo de duplo espelho, já que reflete e se encontra refletida no espaço social; numa fonte de lucro; num objeto do mundo científico e tecnológico, principalmente das tecnologias da comunicação que levam a informação de um lugar a outro; num objeto dentro das Ciências Sociais e do mundo da Educação; ou seja, ela produz uma informação que pode ser entendida como fenômeno de formação de sentido (CHARAUDEAU, 1994, p. 8).

Através de seus textos e discursos, a mídia colabora para definir, ou encaminhar, o rumo dos acontecimentos. Este posicionamento se dá através das ações naturais do procedimento jornalístico, como o de agendar e editar os próprios acontecimentos e os personagens que deles farão parte.

A comunicação midiática deixou de ser vista apenas como um meio técnico, passando a atuar como forma das relações sociais, espaço social, econômico e cultural, assumindo uma dimensão da sociabilidade contemporânea (RUBIM, 1995, p. 109).

As pessoas passaram a buscar mais e mais informações na mídia, e, com o constante surgimento de novos veículos de comunicação, os receptores recorrem àqueles com os quais melhor se identificam para acompanhar o desenrolar dos fatos e/ou aqueles que lhes são de mais fácil acesso. Tal seleção pode privilegiar veículos mais simples quanto à sua produção, como um jornal impresso, composto de poucas páginas, que retrata o cotidiano de uma pequena comunidade, ou de uma emissora de rádio com alcance reduzido, cujos programas são pautados na rotina dos moradores de um minúsculo município. Ou ir além, buscando desde a sintonia de uma grande rede televisiva até a leitura de uma revista de circulação nacional com periodicidade semanal ou, ainda, os informativos on-line disponíveis na Web.

Estas constatações nos levam a crer que a mídia, por toda sua amplitude e intensa presença, afeta o indivíduo e, portanto, seus efeitos sobre a recepção devem ser considerados. Avalia-se que o receptor passou a dar cada vez mais importância ao que os veículos de comunicação de massa noticiam, ou, como explica Shaw (apud WOLF, 1994, p. 130), em conseqüência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, as pessoas sabem ou ignoram, prestam atenção ou descartam elementos específicos dos cenários públicos.

O autor argumenta que o público tem tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos os temas abordados ou negligenciados do seu conteúdo pelos meios de comunicação de massa. Além disso, o público tende a dar a esses temas uma importância que reflete a ênfase atribuída pelos meios de comunicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas.

Visto desta forma, pode-se dizer que o agenda-setting26 passa a ser entendido como um tipo de efeito social da mídia. E que a mídia, pela disposição e pela incidência de suas notícias, determina os temas em que o público irá fixar seus interesses. Conforme Traquina, novas investigações, explorando as conseqüências do agenda-setting e do enquadramento dos mídia, indicam que eles "não só nos dizem em que pensar, mas também como pensar nisso, e, conseqüentemente, o que pensar" (1995, p. 204-205). Tais reflexões levam a uma discussão que remete ao funcionamento do campo jornalístico e à responsabilidade dos jornalistas como profissionais da mídia27.

A) Jornalismo

Antes de passarmos para o tema mídia impressa e aos jornais locais especificamente, entendemos pertinente fazer algumas considerações sobre o jornalismo. Apesar das peculiaridades do jornalismo praticado em pequenas comunidades interioranas, algumas regras básicas são perseguidas pelos produtores das notícias a partir da leitura dos jornais dos centros urbanos maiores, ou, ainda, de exemplos relatados por colegas que atuaram em jornais de grande porte, rádios e emissoras de TV.

No caso específico estudado, partimos do princípio de que a mídia também se configura em um construtor do conceito de fronteira. Isto não se dá apenas na produção do texto, atravessando os relacionamentos, onde se faz presente a internacionalidade da vida local, questão existencial no espaço fronteiriço.

A mídia impressa de modo geral e, principalmente, a produzida em e para pequenas comunidades, torna-se palco e, ao mesmo tempo, agente dos acontecimentos devido a sua proximidade com a população e com as instituições sociais do local onde está inserida. Ficam estampados em suas páginas os fatos que se desenrolam no cotidiano, trazendo à cena os sujeitos que deles fazem parte e que dividem o mesmo espaço territorial. Seus textos, à medida que reproduzem o que ocorre, reforçam ou alteram valores presentes no grupo já que, através dos procedimentos que adota, o fazer jornalístico passa a desempenhar um papel fundamental na construção do mundo (FAUSTO NETO, 1991, p. 25).

O percurso desta prática vai bem além da técnica: o jornal torna-se mais do que simples canal de passagem do que é produzido discursivamente pela sociedade, assume um posto estratégico. Ele ultrapassa o caráter de simples mediador passivo, pois, a partir de fenômenos próprios de produção, passa a construir a realidade.

Desta forma, o jornal ganha importância como um dos dispositivos instituidores do espaço público. Pela sua ação ritualística e cotidiana, "as mídias vão, não só anunciando a noção de realidade, mas convertendo-se, elas mesmas, como lugar pelo qual a realidade não só passa por elas, mas também se faz nelas" (FAUSTO NETO, 1999, p. 16).

O jornal e a mídia como um todo, conforme Braga, constituem-se na principal 'lógica de filtragem' enquanto esfera de intermediação entre o público e o privado. Mesmo que, dentro desta lógica, uma vastíssima parte seja reservada ao espetacular, à sedução, à obtenção de adesão não racionalmente articulada, não sendo monolítica, permite também a passagem de informação (no melhor sentido desta expressão) (BRAGA, 1999, p. 118).

Grosso modo, os jornais falam dos mesmos fatos. Porém, isto ocorre de várias maneiras, ligadas às condições de produção dos discursos28, por parte dos jornalistas. Neste sentido, o jornalismo, elemento da comunicação social, define imagens, escolhe temáticas, códigos de linguagem29 e as próprias práticas discursivas; adota um estilo singular que caracteriza e diferencia cada um dos veículos de comunicação; dirige-se a um leitor virtual, imaginário, que supõe conhecer. Segundo Orlandi, este leitor está inscrito no texto, constituído no próprio ato da escrita, "aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se dirige" (1993, p. 09), que tanto pode ser um 'cúmplice' quanto um 'adversário'.

Por sua vez, o leitor "real" estabelece algumas relações: com os jornalistas, podendo ser esta de confiança e admiração ou desconfiança e desprezo; com aquele leitor imaginário, supostamente presente no texto, uma relação de identificação ou não.

Na medida em que ocorre o processo de identificação, este leitor verdadeiro é capturado pelo texto, assumindo-se como destinatário do mesmo. Estabelecendo-se assim, um "contrato de leitura", isto é, um conjunto de regras e instituições constituídas no campo do discurso e ofertadas para o campo da recepção30. Deste modo, o mundo dos mídia produz um real, oferecendo as alternativas com que a recepção pode dele participar ou usufruir, criando-se e mantendo-se, assim, uma cumplicidade entre produção e recepção, tendo como elemento mediador o jornal:

lemos as notícias acreditando que elas são um índice do real; lemos as notícias acreditando que os profissionais do campo jornalístico não irão transgredir a fronteira que separa o real da ficção. E é a existência de um 'acordo de cavalheiros' entre jornalistas e leitores pelo respeito dessa fronteira que torna possível a leitura das notícias enquanto índice do real e, igualmente, condena qualquer transgressão como 'crime' (TRAQUINA, 1993, p. 168, grifos do autor).

Por seu lado, a mídia se impõe nas sociedades, ela define sua legitimidade e diz-se instituição produtora do único código discursivo legítimo, criando modelos, onde não há outra referência que não a da sua própria reprodução. Faz com que o leitor "acredite" nesta ilusão (questão vital para o jornalismo):

A su monopolio como fuentes fácilmente accesibles de conocimiento sobre aquella realidad social que se escapa de la experiencia personal directa e inmediata los medios añaden (y esto no es un elemento secundario) una componente de 'facticidad' intrínseca a su ser, al mismo tiempo recurso y vínculo (WOLF, 1994, p. 120).

Através do jornal é que o leitor busca ler o mundo, o jornalismo passa a ser uma narração do real mediada por sujeitos (no exercício de suas subjetividades) e que "as escolhas se dão da pauta à edição, passando pela apuração, pela seleção das fontes e pela hierarquização das informações. Tendo consciência desse processo ou não, o leitor ainda assim busca no jornalismo uma porta para o real" (JACKS; MACHADO; MÜLLER, 2001, p. 11).

Não existe jornalismo sem fatos, sem contextos sociais, sem relações de poder e decisões políticas, nele também se fazem presentes os interesses econômicos, as crenças religiosas, as concepções estéticas. Pensar que estes elementos não são partes constitutivas do todo é compreendê-lo de modo errôneo.

Assim, para que a construção do cotidiano ocorra, o apoio comunicacional ativa enunciações, buscando a criação de enunciados. No caso da enunciação jornalística, pode-se dizer que ela é "a forma pelo qual o profissional se apropria da língua para construir sua posição de locutor, visando um outro (ou seja, o leitor)" (FAUSTO NETO, 1994, p. 153). Sendo assim, este discurso é a resultante da composição de aspectos que lhe parecem externos.

A partir dos movimentos realizados pelo jornalista, a mídia apresenta ou omite, através de estratégias discursivas, o que interessa a seus enunciadores. Pode-se dizer que o jornalista, ao produzir um texto, elabora vários efeitos de sentido31, para que possa atingir a cada parte envolvida no processo, o que provoca, conseqüentemente, diferentes formas de interpretação. E, como já foi dito, esta construção se dá a partir de normas e busca atingir objetivos específicos. De acordo com cada mídia, tais normas, que determinam a lógica e a elaboração do espaço do discurso jornalístico, possuem um caráter do próprio campo jornalístico.

Como, neste estudo, a análise recai sobre jornais impressos, com um cunho local, produzido por profissionais nem sempre com uma formação profunda no campo jornalístico e tudo o que ele aciona, torna-se fundamental direcionar algumas considerações para este tipo de veículo, bem para os recursos de que lança mão para atingir seu público de interesse, o cidadão, leitor fronteiriço.

B) Jornal impresso

Para compreender como o jornal impresso local atua nos espaços de fronteira, configurando-se como elemento ativo nos processos sociais em desenvolvimento nos territórios fronteiriços, torna-se necessário tecer considerações que dizem respeito a este tipo específico de mídia. Isto será feito, primeiramente, de modo mais abrangente, passando após para casos especiais como os tratados por neste estudo.

O jornal impresso, caracterizado como um veículo de comunicação de massa, pode ser entendido como instrumento de comunicação produzido em e para comunidades específicas. Sua circulação pode ser restrita a um pequeno município, atingindo localidades próximas, compondo um espaço peculiar, uma região, no caso a da fronteira.

Um dos veículos mais antigos de comunicação de massa, o jornal impresso se constitui em importante mídia, com força de penetração e com credibilidade nas comunidades.

Como instrumento de disseminação da informação diária, os jornais dividem espaço com o rádio, a televisão e, mais recentemente, com a Web, que disponibiliza informativos on-line, mas com capacidade de abrangência mundial.

A data de surgimento dos primeiros jornais impressos provoca controvérsia, pois nem sempre eram respeitados critérios rígidos, com relação, por exemplo, à periodicidade. Entretanto, conforme os registros existentes (COSTELLA, 1984), em fins de 1500, inicia-se a produção de jornais impressos na Europa, intensificando-se por volta de 1600.

No Brasil, embora exista uma polêmica sobre o tema, o marco do oficial para o início da imprensa escrita está estabelecido em 1808. Nesta data, passou a circular, no território brasileiro, a Gazeta do Rio de Janeiro (PINHO, 1990)32.

Conforme levantamento do Instituto de Verificação de Circulação (IVC), em 1993, circulavam cerca de 2.414 jornais diários. Destes, 2.106 estavam concentrados nas regiões Sul e Sudeste (DOTY,1999). No Rio Grande do Sul, em 1998, cabia ao jornal impresso a parcela de 17% dentre as principais mídias de massa em circulação (Anuário de Mídia, 2000).

Os jornais são procurados como fonte de informações gerais, como notícias locais, regionais, nacionais e internacionais, sendo estas últimas feitas por agências internacionais de notícias, que preparam material e enviam boletins diariamente a todas as partes do mundo através de redes de transmissão com tecnologia de ponta. Contam com o apoio de empresas que apuram as informação locais e utilizam-se do trabalho de enviados especiais, destinados a cobrir os acontecimentos em determinadas regiões e/ou países, ou requisitados para acompanhar eventos como feiras, visitas de autoridades a outros países ou até mesmo grandes catástrofes e conflitos.

Las agencias de noticias son fuentes de segundo orden porque aportan acontecimientos seleccionados e interpretados, y redactados en forma de cables. (...) A través de la historia, proveedoras de la información básica y cotidiana a los medios, en especial dela información internacional, realizan una tarea de primera selección de los acontecimientos para estabelecer una agenda básica noticiable (MARTINI, 2000, p. 69-70).

Atualmente, estas agências são consideradas pelos veículos de menor porte fontes indispensáveis e insubstituíveis, devido aos custos para a montagem de uma rede própria de captação nacional e internacional de notícias. Entretanto, isso provoca um agendamento externo que atinge o local, influenciando o conhecimento sobre a realidade. Associadas às novas tecnologias, elas preparam material a ser usado por outras mídias. Uma das críticas a este repasse de informações é de que, com freqüência, os jornais reproduzem a informação sem adaptá-la nem ao veículo, nem ao leitor, tornando a notícia desinteressante e distante.

Como forma de atrair a atenção dos leitores, um dos recursos usados pelos jornais foi a criação de editorias especializadas e seções destinadas a temas específicos - como educação, esporte, política, cotidiano etc. Assim, os veículos conseguiram captar leitores com interesses distintos, de modo a cativar um público preferencial, identificado pela política adotada no veículo e os assuntos que mantêm em destaque (DAZEVEDO, 1971).

Uma tendência mais recente e adotada tanto por grandes como por pequenos jornais, é a criação de cadernos especiais sobre moda, turismo, culinária, cultura, lazer, agricultura, entre outros, encartados em dias alternados. Para atingir um público mais específico ainda, alguns jornais dirigem seu foco a temas restritos como os ligados à área de economia e negócios, transformando-se assim em mídias segmentadas.

De acordo com o sistema adotado na maioria das empresas jornalísticas, o jornal impresso, assim como outros veículos comerciais, sustenta-se por meio de anúncios publicitários. O sistema de distribuição se dá através de assinaturas ou por meio da aquisição em pontos de vendas, como as bancas de jornais e revistas, tabacarias entre outros, garantindo uma circulação mínima, complementando o rendimento necessário para manutenção do veículo em circulação.

Acompanhando as tendências e seguindo estratégias mercadológicas, os jornais diversificam sua forma de apresentação: recorrem a novas diagramações, cores, fotos, desenhos, infografias, unidades especializadas (cadernos dominicais, classificados etc.). Todos esses recursos têm como objetivo tornar mais agradável a leitura, oferecer melhores condições de reprodução das notícias bem como dos anúncios nele veiculados, e, até mesmo, criar diferenciais que o transformem em uma mídia mais competitiva num mercado onde novas ofertas surgem a todo instante.

Entretanto, ao lançar mão de tais recursos, calcados no fascínio pela imagem, e pelo fato de a tecnologia interferir nos conteúdos, como destaca Marcondes Filho, acaba favorecendo certas linguagens em detrimento de outras. Assim, isso faz com que "a aparência e a dinamicidade da página é que se tornem agora decisivos" (MARCONDES FILHO, 2000, p. 31), isto é, a ordenação e a disposição desempenham um papel chave; as matérias são encurtadas, prevendo que o leitor não vai chegar até o fim.

Mouillaud (1997) ressalta que, ao contrário do que muitos pensam, o jornal - e a mídia em seu conjunto - "não está, entretanto, face a face ao caos do mundo". Para o autor, o veículo está localizado no final de "uma longa cadeia de transformações que lhe entrega (não apenas por intermédio das agências internacionais, mas de uma multiplicidade de agências, descritas por Mark Fishamann, de instituições públicas e privadas), um real já domesticado" (1997, p. 51). De acordo com o autor, o jornal

é apenas um operador entre um conjunto de operadores sócio-simbólicos, sendo, aparentemente, apenas o último: porque o sentido que leva aos leitores, estes, por sua vez, remanejam-no a partir de seu próprio campo mental e recolocam-no em circulação no ambiente cultural. Se, na origem, o acontecimento não existe com um dado 'fato' também não tem solução final. A informação não é o transporte de um fato, é um ciclo ininterrupto de transformações (MOUILLAUD,1997, p. 51).

O veículo comunicacional, jornal impresso, faz parte de um conjunto de elementos que tornam dinâmicas as trocas (no caso de informações) entre grupos e comunidades, estimulando algumas discussões, silenciando outras, a partir do que estampa em suas páginas, trazendo vantagens e desvantagens para a engrenagem maior, da qual faz parte a publicidade.

Do ponto de vista publicitário, também importante para compreender a mecânica do jornal impresso, este veículo foi o primeiro grande instrumento utilizado por essa área da comunicação (SANT'ANA, 1982). Essa mídia possui uma série de vantagens, como o fato de sua leitura já ser considerada um hábito disseminado mundialmente. Contribui para melhorar o nível de instrução de uma população pelo simples fato de estimular uma leitura diária ou, no mínimo periódica, distribuída nos dias da semana.

Assim como para a publicidade (KLEPPNER'S, 1988) e, também, para o jornalismo em si, constitui-se em um instrumento importante, pois garante uma periodicidade certa. Este fator vem ao encontro das necessidades dessa área que vê na repetição dos anúncios um forte componente para a divulgação de um produto ou serviço, ou mesmo fixação de uma marca.

Por outro lado, em comparação com outros veículos, sua vida é breve e, levando em conta as novas tecnologias e recursos, existem limitações quanto à forma como o material é apresentado, que se comparada com outras mídias, como as revistas e os informativos on-line, deixa a desejar.

Mesmo que a dedicação à leitura deste veículo não seja grande, as pessoas reservam alguns momentos do seu dia para fazê-la, pelo menos "passando os olhos" nas principais manchetes de modo a tomarem conhecimento sobre o desenrolar dos fatos. Embora seja um veículo dirigido ao indivíduo, por propor um exercício individual, tornou-se um produto consumido por, praticamente, todas as faixas etárias. É lido por vários membros de um mesmo grupo, como a família ou uma equipe de trabalho, atraídos pelos diversos assuntos ofertados. A atenção de cada um é atraída de modo especial: através das manchetes, dos temas abordados ou mesmo por suas cores, fotos, ilustrações e seções distintas. Por isso, o jornal impresso tem grande ressonância nos espaços onde e com os quais tem ligação e, nesse aspecto, algumas considerações sobre o jornal relacionado com o aspecto do local merecem ser registradas.

C) Jornal local

As grandes transformações que se configuram nos desenhos da sociedade e das comunidades chamam atenção para o fato de o local ser definido como algo mais do que apenas o dado pelos limites do território ou através de uma proximidade real, tratada como a vizinhança.

De acordo com Tétu (1997), qualquer definição atual do local deve levar em conta três componentes principais: a proximidade, com certeza, mas a esta proximidade do lugar há que se acrescentar a teleproximidade; o pertencimento a um grupo social, isto é, as marcas de sociabilidade que assinalam a ligação (ou a exclusão) social; a participação, isto é, a efetividade do pertencimento (visto que uma importante parte da comunicação das coletividades coloca-se sobre a necessidade do "ser levado em conta e do ser escutado").

Conforme o conceito deste autor, o local não pode mais ser definido por "um único território, mas pela noção de lugar de vida, quer dizer, não apenas à ancoragem territorial do habitat, mas sobre tudo o lugar, não forçosamente territorializado, onde se dão os conflitos e o efeito das decisões em matéria de desigualdade de todos os tipos, de emprego (ou de desemprego), de transporte, de acesso à cultura (de escolaridade), de saúde, etc.". Para ele, o local "aparece como o lugar de 'verdade' do político" (TÉTU, 1997, p. 434-435).

Com relação à imprensa escrita e referindo-se à localidade, Tétu salienta que esta "é menos geográfica e econômica que institucional: coletividades locais, escolas, associações, etc.". E a prova mais manifesta de tal fato "é a de que esta informação toma por objeto homens integrados neste sistema local, enquanto exclui aqueles que nele não interagem" (TÉTU, 1997, p. 339).

De acordo com este posicionamento, o homem passa a ser visto através das instituições que representa, assume valor de importância por meio de sua posição dentro destas e, caso não tenha lugar representativo na estrutura das mesmas, passa a não ser considerado.

Uma característica dessa imprensa local, vincula-a à comunicação oral, presente no mercado da comunidade, no café do comércio, nas praças públicas. Torna-se o arauto dos acontecimentos locais, substituindo a divulgação via editais e a guarda campestre, que se davam em um tempo nem tão distante (em algumas lugares ainda presentes e de importância). Outro traço constitutivo da informação local é o equivalente ao cartão de 'participação'. Essa não é na origem, "uma comunicação dizendo respeito à vida 'pública', mas preferencialmente o local de passagem entre o 'privado' e a 'vida pública'" (TÉTU, 1997, p. 440).

Uma ressalva feita com relação à mídia impressa local, diz respeito à falta de embates apresentados pelo veículo:

O que mais choca quando da leitura atenta das páginas locais é a ausência quase total de conflitos que, entretanto, constituem uma dimensão central da vida desses grupos, como se tudo o que é o objeto de uma disputa real de poder se encontrasse neles afastado em prol do espetáculo da concordância, que encontra nas manifestações culturais ou festivas seu símbolo mais significante. Nessas páginas, a informação parece, desta forma, querer ser certificadora, demonstrativa, banalizante e promocional (TÉTU, 1997, p. 440-444).

Como é previsível em espaços de fronteiras, há momentos onde o espírito nacionalista se faz presente, trazendo repercussões nos textos jornalísticos que abordam questões envolvendo as comunidades destas regiões. Mas nem sempre as possíveis tensões decorrentes destas diferenças ficam esboçadas de modo explícito nas páginas dos jornais locais. Isto se deve talvez pelo fato de a imprensa local ter como objetivo evitar que se intensifiquem as rivalidades, embora elas façam parte do dia-a-dia das localidades, e, inevitavelmente, passem a se constituir em notícias.

Em situações como, por exemplo, a proibição da passagem de transporte de cargas de um lado para outro, a discussão é eminente, e a forma de o jornal lidar com este tipo de situação não pode ser, em espaços como os fronteiriços, a de assumir uma postura de negação das crises. Esses eventos constituem-se, evidentemente, em momentos delicados, solicitando tratamento especial.

Por outro lado, os conflitos podem ser considerados situações de interação entre os moradores dos países envolvidos, e, por isso, a mídia não pode ignorá-los. O que pode ocorrer é que, dependendo dos atores que ela traz para contracenarem e o modo como se dirige a eles, deixa nas entrelinhas seu posicionamento. Esse, na maioria das vezes, só é perceptível pelos leitores locais, que reconhecem os personagens, o cenário e a linguagem empregada, a política e a filosofia do veículo.

Deve se levar em conta também que a (re)vitalização da produção local e o surgimento de veículos e de empresas de comunicação vinculadas, de forma mais estreita, às comunidades das quais fazem parte, vive um momento especial. Apesar de tudo estar "conectado globalmente", o público quer "se ver", "se ouvir", entender-se como sujeito participativo dos processos sociais em curso.

Neste contexto, prolifera a imprensa local, constituindo-se em alternativa para atender a ambos os lados da cadeia de produção: o profissional da comunicação que necessita desenvolver um novo nicho de atuação, já que os grandes canais e redes estão superlotados de trabalhadores e, de modo geral, altamente supridos com equipamentos e tecnologias de última geração. Por seu turno, o público busca preferencialmente fazer uma leitura dos fatos que o cercam e o atingem de maneira direta e mais rápida.

Vemos o global e o local se entrelaçando. Conforme chama atenção Ortiz (1994a, p. 181), o local "não está necessariamente em contradição com o global, pelo contrário, encontram-se interligados". A ligação com o mundo todo é valorizada e irreversível, mas, da mesma forma, o indivíduo não quer ser tratado como um ponto na multidão, membro da massa e, por isso, focaliza-se também nas questões que envolvem diretamente a comunidade da qual faz parte, da qual se sente sujeito.

Esta mídia local que espelha e ajuda a reproduzir hábitos, atitudes, costumes e comportamentos peculiares a cada região, vai muitas vezes de encontro com os objetivos dos grandes grupos e organizações representantes das indústrias culturais, que defendem os interesses do capital internacional. Na medida em que mostra os acontecimentos que se desenrolam na comunidade, valoriza aquele "homem-sujeito" e seus feitos, reforçando o seu papel de agente social, capaz de transformar a sociedade. Conhecendo bem o contexto onde está inserido, o jornal reconhece situações "rotineiras" em determinada comunidade, reproduzindo elementos que evitam um esforço maior de compreensão entre os elementos envolvidos no processo comunicacional do qual ele faz parte, estimulando e contribuindo para que se desenvolva uma espécie de conversação (BRAGA, 1994).

O convívio entre os jornais impressos que são distribuídos nacional ou regionalmente e os com o objetivo de circulação local faz-se através da distinção que a mídia local dá aos assuntos relativos diretamente à comunidade, abrindo mais espaço em suas páginas a temas que dizem respeito aos grupos no qual ela se insere, representa e faz parte. E isso se verifica ao ser observada a preocupação desses jornais em abordar fatos ligados aos acontecimentos políticos, sociais, econômicos, policiais entre outros, de interesse do município ou que o afetam diretamente.

Esses aspectos foram destacados por Bahr, afirmando que "de todos os veículos de comunicação, os jornais são, talvez, os mais provincianos na sua relação com aquilo que é pertinente para uma determinada comunidade dentro da qual eles são publicados". Bahr caracteriza o jornal como "a resposta a uma manifestação da cultura de uma comunidade individual" (apud PINHO, 1990, p. 139). Essa constatação parece reforçar a importância do jornal impresso como uma mídia local, instrumento da manifestação cultural de uma comunidade.

O jornal impresso é um dos veículos mais apropriados à circulação local, pois a intimidade que possui com os leitores lhe dá liberdade (e ao mesmo tempo responsabilidade) para tratar suas matérias no sentido de conhecer melhor seu público diário. Esta mídia também cumpre a função de manter informados leitores mais distantes que desejam saber o que se passa em determinada comunidade e querem saber isto através das palavras de quem convive com os habitantes do lugar. Não podemos negar, entretanto, que existem periódicos de cidades pequenas, que destinam grande parte de seus espaços para a comunidade ao seu redor, que circulam por todo o mundo e até mesmo possuem uma distribuição regular em níveis nacional e regional33, contando com assinantes espalhados por vasto território.

No caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, o jornal há muito está presente no cotidiano das pessoas e tornou-se elemento importante para a sociedade. O primeiro jornal impresso gaúcho surgiu em 1827: O Diário de Porto Alegre. Na época, o Estado contava com cerca de 12 mil habitantes (RÜDIGER, 1993). Entre 1925 e 1948, floresceram jornais no interior rio-grandense, muitos deles circulando até os dias de hoje.

No ano de 2001, existiam cerca de 218 jornais variados, destinados à circulação local e/ou regional, distribuídos entre jornais diários e semanais, com uma periodicidade variada, podendo ser de uma até cinco vezes por semana, com algumas raras exceções de circulação diária (ARI, 2001). Segundo informações fornecidas pela Associação dos Jornais do Interior do Rio Grande do Sul (ADJORI-RS), são cerca de 187 jornais associados à entidade 34 com circulação regular, atingindo uma população que gira em torno de 10.087.798 habitantes 35.

Em comunidades distantes dos pólos de decisão e dos centros comerciais, em especial as situadas nos limites extremos do país, nas linhas de fronteira, a mídia impressa, além de ser considerada provinciana, interiorana, enfrenta problemas decorrentes da sua situação geográfica. Falta de pessoal qualificado e dificuldades quanto à matéria-prima e aquisição/manutenção de maquinário são problemas comuns aos administradores desses jornais. Estes, por sua vez, também entraram no ramo das chamadas indústrias culturais pelo fato de ser mais uma opção de empreendimento e modo de sobrevivência em pequenas e médias cidades.

Por estes motivos, um grande número de jornais do interior emprega jovens com pouca formação e mínima experiência na área, mas cheios de vontade e de orgulho ao se denominarem - e serem reconhecidos pela comunidade - como "os repórteres da cidade". Neste grupo de jornais, podemos incluir os produzidos em Uruguaiana-Paso de Los Libres e Santana do Livramento-Rivera.

As variações no contexto socioeconômico trazem repercussões visíveis nas organizações midiáticas interioranas. Elas provocam oscilações na configuração das equipes de trabalho, nas políticas e nas filosofias dessas empresas jornalísticas, detectadas na qualidade de seu produto final, no caso o jornal impresso.

Se compararmos, por exemplo, os jornais fronteiriços dos anos 90 e o dos dias atuais, observaremos que, em muitos aspectos, não há alterações. Porém, em outros há algumas pequenas diferenciações, destacando-se o fato de o leitor confirmar que busca na imprensa local as informações sobre a sua comunidade (DORNELLES, 1999).

Constatou-se uma dificuldade para empregar profissionais experientes e qualificados para atuar na cobertura jornalística, com conhecimento, formação e experiência na área. Esse fato torna estes veículos instrumentos de comunicação diferenciados dos produzidos nos grandes centros urbanos, onde a equipe preenche os quesitos que caracterizam a profissão de jornalista. O enfoque dado, a simplicidade na redação dos textos e a proximidade dos "repórteres" com as fontes de informação fazem dos jornais do interior veículos singulares.

Nas cidades fronteiriças em questão, o diferencial vai além. As notícias oscilam entre a conceituação do que é tratado como local e ou internacional. Estas duas esferas andam lado a lado, confundem-se: o que se passa do outro lado (da Ponte ou da Rua e do Parque) representa muito mais a vida local e muito pouco a internacional.

Embora pontos de discussão entre governos federais, e que eclodem nos espaços fronteiriços, sejam avaliadas pelas mídias de outros centros urbanos como crises e notícias internacionais, para as comunidades que habitam a fronteira estes fatos são muito mais locais do que internacionais. Eles dizem respeito aos moradores de uma "mesma" comunidade, que habita ambos os lados, envolvidos diretamente com eventos deste tipo.

Os fatos mais relevantes são os que dizem respeito à comunidade. Entretanto, nem sempre o que importa é o evento ter se desenrolado deste ou daquele lado da linha de fronteira. Mesmo a nacionalidade dos envolvidos pode não ter relevância, pois, com grande freqüência, os moradores de Livramento-Rivera possuem dupla cidadania.

Mesmo com o auxílio da Web, onde informações de todos os cantos do mundo são buscadas pelas redações da mídia local para complementarem os espaços de notícias a serem apresentadas ao leitor, o que ocorre na comunidade é o mais importante. Assim, os jornais locais buscam dar destaque ao que se passa nessas localidades, entrelaçando o local e o internacional a todo o momento, pois este é o movimento que aquela sociedade faz normal ou naturalmente.

Mas para que se possa avançar no entendimento da complexidade dos enlaces entre os Campos Sociais presentes nos espaços territoriais em questão, entre eles o da comunicação, e, por se tratar de um estudo ligado à área da pesquisa social, há que se apontar para a criação de estruturas que, mesmo embasadas em referenciais teórico-metodológicos já consagrados, possam dar conta de interpretar e compreender as atuais configurações do tecido social representado nas páginas dos periódicos locais.

14 A tradução aqui utilizada é de 1992.
15 O texto faz referência a Morin (1987) que destaca que a fronteira simultaneamente abre e fecha, autoriza e proíbe a passagem, e ao posicionamento de Milton Santos (TV PUCSP, 1995) que ressalta que as fronteiras fazem parte de um processo, portanto, não são algo acabado.
16 Para a autora, se o limite é um elemento constitutivo da fronteira, e este não faz parte do território, a fronteira pode ser pensada como a negação desse, isto é, um espaço considerado como não-território.
17 A expressão é empregada por Mélo, em seus estudos sobre as relações fronteiriças Brasil-Uruguai nos anos noventa naquele espaço (2000).
18 Conforme adverte Grimson (2000, p.29), devemos ter cautela ao analisar zonas de fronteira, levando em conta dois elementos. O primeiro deles é o mito apregoado por seus habitantes que dizem que "a fronteira não existe" ou que "estamos integrados desde sempre", pois, apesar do que dizem os atores, é possível que a fronteira não exista para algumas coisas e para outras exista. O outro elemento a ser considerado é o discurso nativo da 'irmandade imemorial' como base articuladora de uma identificação transfronteiriça como zona periférica e marginalizada, contrária às respectivas metrópoles nacionais que, em termos locais, opera muitas vezes como base de sustentação de um protesto político contra o centralismo.
19 Na Guerra Civil que se desenrolou no Estado no período da Proclamação da República, as forças oposicionistas gaúchas - os federalistas ou maragatos - firmaram alianças com as províncias argentinas de Corrientes e Entre Rios. Do lado Uruguai, os pontos de contato eram Rivera, Bella Unión e Cerro Largo. Nestes pólos, a ligação brasileira se deu através de cidades como Uruguaiana e Santana do Livramento, configurando a região em verdadeiro santuário dos quais a oposição lançava as invasões. Segundo Chindemi (2000, p. 84), a denominação maragatos surgiu pelo apoio de grupos uruguaios, descendentes de espanhóis provenientes de Maragatería, isso convertia os maragatos em invasores estrangeiros.
20 Este lençol tem potencial para abastecer de água 150 milhões de pessoas num período de 2.500 anos.
21 De acordo com informações fornecidas pelo Cartório Eleitoral da cidade, no 1º semestre de 2000, dentre seus habitantes, 80.478 são eleitores, sendo que a maioria composta de mulheres.
22 Por esta porta é escoado cerca de 5% das exportações brasileiras.
23 Uruguaiana possuía no primeiro semestre de 2000 cerca de 6 mil desempregados, contando com uma população flutuante formada por norte-americanos, espanhóis etc., ocasionada pela construção do gasoduto.
24 O estudo "A Representação da Argentina e do argentinos na imprensa do sul do Brasil", de Jacks; Machado; Müller (2002) discute, entre outros pontos, a formação histórica da rivalidade entre Brasil e Argentina, visando detectar alguns traços de uma construção ideológica.
25 As curiosidades e peculiaridades dos espaços fronteiriços têm sido abordados por reportagens produzidas pela mídia regional e nacional. O dado apresentado acima foi veiculado no programa "Os árabes no Rio Grande do Sul", tema da série "Mundo Grande do Sul", veiculado pela RBS TV.
26 Resumidamente, agenda-setting é uma teoria que discute uma das formas de incidência da mídia sobre o público receptor. A evolução do conceito, nestes últimos vinte anos, é discutida por Traquina (2001), sob a temática da redescoberta do poder do jornalismo.
27 Para Traquina, outra conclusão diz respeito às responsabilidades dos jornalistas que são bastante sérias, pois "as exigências feitas aos profissionais do campo jornalístico serão cada vez maiores. Por isso, torna-se insustentável negar o papel ativo que os jornalistas exercem na construção do social" (1995, p. 213).
28 Segundo Charaudeau (1994), a comunicação midiática põe em relação duas instâncias: a de produção (uma entidade composta) e a instância de recepção da qual faz parte o leitor/ouvinte/telespectador, que não pode ser claramente definida pela primeira, mas pode ser identificada como ator participante na vida pública da sociedade. Assim, é estabelecido um "contrato de comunicação", em que devem ser considerados não só estes parceiros, mas também a finalidade dessa comunicação, as circunstâncias e os dispositivos acionados.
29 Essa linguagem não é apenas uma forma de representação ou correspondência com a realidade, mas uma "forma de ação, de atuação sobre o real e, portanto, de constituição do real" (SEIXAS, 2001, p. 265).
30 Ao analisar o "contrato de leitura", Verón destaca que, nessa relação, o conjunto de receptores/leitores não só recebe os conteúdos, mas conteúdos "representados" por uma estrutura enunciativa em que qualquer um (o enunciador) lhe fala, e que um lugar preciso lhe é proposto no que diz respeito ao destinatário (1985).
31 Verón afirma que "todo discurso desenha um campo de efeitos de sentidos e não um só efeito" (1983, p. 34).
32 Durante 90 anos, o dia 10 de setembro foi considerado o "Dia da Imprensa". Até que, em 13 de setembro de 1999, o presidente Fernando Henrique Cardoso, por força da Lei Federal n.º 9831, estabeleceu o dia 1º de junho para as comemorações do "Dia da Imprensa". O processo foi encaminhado pelo jornalista Raul Quevedo, que, acompanhado de uma forte manifestação da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), entregou ao deputado federal Nelson Marchezan, um pedido defendendo a transferência de data comemorativa ao "Dia da Imprensa", de 10 de setembro para 1º de junho. Após a solicitação, Marchezan elaborou um projeto de lei atribuindo a Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça - Hipólito José da Costa - o pioneirismo em jornalismo no Brasil. Hipólito foi redator do "Correio Braziliense", periódico editado em Londres e contrabandeado regularmente para o país em 1808. Disponível em: . Acesso em: 02/12/2002.
33 A classificação local, regional e nacional também é adotada na área da publicidade e diz respeito a esfera de circulação das mídias. Os anúncios destinados a uma área local são direcionados ao leitor/consumidor que quer informações para tomar alguma decisão no sentido de adquirir um bem ou contratar um serviço e, sendo assim, a mídia impressa local funciona bem. Suas mensagens estão direcionadas a um destinatário mais "próximo". O emprego de uma linguagem mais apropriada facilita o alcance do resultado final: conquistar o cliente. Por isso, ao ser observado um jornal impresso local, é perceptível o grande número de anúncios publicitários provenientes do comércio e de prestação de serviços locais, já que esta mídia tem um custo mais acessível e um retorno mais garantido (COHEN, 1974).
34 Este número foi fornecido no ano de 2000 pela entidade e confirma-se em julho de 2002.
35 Dados fornecidos pela Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul, com base no último levantamento (2000) onde a população de todo o Estado, incluindo a capital, é de 10.187.798 habitantes.

topo

home tese impressões artigos bibliografia links contato

produzido por Atelier Design Editorial Ltda