Resumo

Preâmbulo

Lista de Figuras

Lista de Siglas

Introdução

Primeira Parte: A fronteira
e a Comunicação

1 Caracterização
do Objeto de Pesquisa

1.1 Identidades
e Espaços de Fronteira

1.2 Cultura, ideologia
e meios de comunicação


2 Contextos de Inserção
do Objeto da Pesquisa

2.1 Fronteiras Vivas
2.2 Pólos de Integração
2.3 Caracterização Geral
2.4 Jornalismo e Mídia
Impressa


3 Abordagem Metodológica
3.1 Táticas de
Aproximação do Objeto

3.2 Passos Concretos

4 Vozes sobre as Relações
na Fronteira

4.1 Uruguaiana-Libres
4.2 Santana do
Livramento-Rivera

4.3 Comparando os
Dois Espaços


5 Caracterização dos Jornais
5.1 Jornais de Uruguaiana-
Libres

5.2 Jornais de Livramento-
Rivera


Segunda Parte: A fronteira
na mídia local impressa


6 Análise dos Textos
Selecionados

6.1 A Fronteira
6.1.1 Preliminar: diferentes
usos da expressão fronteira

6.1.2 Fronteira como
amálgama cultural

6.1.3 Fronteira como
transcendência do local

6.2 O fronteiriço
6.2.1 Nós, ou brasileiros ou
argentinos ou uruguaios

6.2.2 Nós todos
6.2.3 Nós, da região
fronteiriça ampliada

6.2.4 Nós, semelhantes
implícitos


Conclusões

Anexos

Referências




1 Caracterização do Objeto de Pesquisa


Utilizando como viés os estudos do campo das ciências da Comunicação, elegemos a temática "comunicação de fronteira" para esta pesquisa. Os espaços escolhidos para a análise são regiões limítrofes do sul do Brasil, em especial do Estado do Rio Grande do Sul, em seus pontos de contato com outros dois países, a Argentina e o Uruguai. A proposta é verificar como ocorrem as práticas comunicacionais em Uruguaiana-Paso de Los Libres e em Santana do Livramento-Rivera, através da presença do fenômeno fronteira nos processos midiáticos locais. Para tanto, foram selecionados os jornais locais O Jornal de Uruguaiana, El Interior, A Platéia e Norte, todos produzidos na e para a comunidade fronteiriça.

No ambiente de fronteira, como em qualquer outro, vários são os campos sociais e as relações instituídas que trazem reflexos nas dinâmicas das rotinas ali instauradas. Por isso, o diferencial adotado como foco recai sobre o fenômeno fronteira. Portanto, mais do que fazer um simples relato descritivo, pretende-se estabelecer articulações entre a realidade vivida no ambiente de cidades situadas na linha divisória de países latino-americanos e aportes teóricos, que possam levar a uma análise reflexiva, possibilitando um entendimento maior de como a presença da fronteira comparece nos processos comunicativos e midiáticos das comunidades fronteiriças.

Para iniciarmos a discussão, é preciso levar em conta que determinados aspectos afetam o panorama fronteiriço, entre eles os diversos acertos estabelecidos entre os países do Extremo Sul da América Latina, cujo Acordo vigente está formalizado no Tratado do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)1. O MERCOSUL constitui-se no pacto mais recente e atual entre os movimentos direcionados a fortalecer os países do Extremo Sul latino-americano, visando, principalmente - ou quase exclusivamente -, os aspectos econômicos. Cabe ressaltar que, assim como ocorreu com o surgimento de outros Blocos, a criação do MERCOSUL se dá em um momento em que há uma preocupação em converter a região em um palco integrado economicamente em nível internacional.

A observação é válida na medida em que o território escolhido para estudo é peculiar: fronteira entre países que se propõem a manter um acordo integracionista, a partir de sucessivas composições, hoje identificadas na criação deste bloco econômico. Por esse motivo, o espaço tem como uma das principais características ser o cenário de trocas comerciais. Estas transações não se dão apenas em nível de comércio internacional, mas também do local. Nas comunidades da fronteira são constantes as aquisições de produtos, inclusive os de primeira necessidade, por moradores de um lado em estabelecimentos comerciais do outro. Devido às flutuações monetárias existentes entre os países que constituem a área do MERCOSUL, a passagem dos moradores da região de um lado ao outro, cruzando a linha de divisa territorial com o objetivo de adquirir mercadorias para consumo próprio, configura-se em um movimento normal.

Entretanto, vale destacar que também por conta do Acordo, são constantes as desavenças entre os produtores e os governos federais, quanto às tarifas cambiais, à qualidade e à quantidade de produtos comercializados. Tais atritos vêm à tona em espaços como Uruguaiana-Paso de Los Libre e Santana do Livramento-Rivera, onde os habitantes locais são os primeiros atingidos.

Em momentos de crise entre as esferas nacionais, as transações comerciais sofrem forte fiscalização por parte dos agentes federais, representantes de órgãos oficiais sediados nas capitais brasileira, uruguaia, argentina, as mais fortes dentre as do Bloco. Conflitos entre exportadores/importadores e transportadores de produtos destinados aos diferentes países do Cone Sul latino-americano são comuns e seus reflexos também podem ser observados nas áreas de passagem entre os territórios nacionais. Tais questões, instituídas à revelia da situação vivida pelo homem da fronteira, não levam em conta as necessidades do fronteiriço, que precisa se apoiar no "vizinho" para vencer as dificuldades do dia-a-dia.

O período definido como marco temporal para a análise aqui proposta foi o ano 2000. Naquele ano, cidades vizinhas, como Paso de Los Libres, uma das poucas áreas urbanas argentinas que faz divisa com povos de fala portuguesa, e a gaúcha Uruguaiana, localizada na fronteira do Brasil, elegeriam seus administradores públicos locais em maio e em outubro, respectivamente2. Da mesma forma, os habitantes de Rivera, capital da província uruguaia que recebe a mesma denominação, e de sua lindeira, Santana do Livramento, também localizada no Extremo Oeste gaúcho, escolheriam seus representantes para os poderes executivo e legislativo municipal, também em maio e em outubro.

Situações como essas - ligadas à política, trazendo à cena local as disputas eleitorais -, produzem um diferencial para tais comunidades. A proximidade que áreas urbanas - pólos de constante ebulição social - como Uruguaiana e Santana do Livramento, possuem de cidades pertencentes a outros países, propicia uma série de momentos de interação, resultando em acontecimentos que, de fato, passam a se configurar como manifestações características de processos singulares (e talvez comuns) nos dois lados.

Para compreender a estrutura dessas comunidades interioranas, situadas num ambiente fronteiriço, deve-se levar em conta aspectos do cotidiano - espaciais e temporais, sociais e históricos -, bem como as instituições e os meios de comunicação locais, produzidos e direcionados a esses grupos. O mundo consiste em múltiplas realidades, mas "a realidade por excelência é a da vida cotidiana que se impõem à consciência de maneira mais maciça, urgente e intensa" (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 38). A existência do sujeito na vida cotidiana só é possível se ele está continuamente em interação e comunicação com os outros. Uma das peculiaridades das áreas em questão é, justamente, o fato de elas serem definidas oficialmente como linhas territoriais demarcatórias, representando o limite da soberania dos países que fazem contato.

Sendo assim, para que o estudo se sustente, determinados elementos serão trazidos ao debate, tornando possível delinear o quadro necessário para possibilitar avanços, sugerindo novas perspectivas de pensamento, envolvendo conceitos como cultura, comunicação e ideologia, vistos de modo entrelaçado. Um outro conceito que deve ser trabalhado é o de fronteira, hoje em dia questionado e repensado devido às grandes transformações tecnológicas que forçam a quebra de barreiras, borrando e alterando a demarcação de limites considerados como zonas divisórias.

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1.1 Identidades e espaços de fronteira

Inicialmente, queremos deixar claro a que conceitos de lugar e de espaço estamos nos remetendo. Entendemos que lugar pode ser considerado "a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência", isto é, "os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado em um 'lugar' próprio e distinto que define" (CERTEAU, 1994, p. 201). Já espaço pode ser considerado um "cruzamento de móveis", de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram, ou seja, "o espaço é um lugar praticado" (CERTEAU, 1994, p. 201). Sendo assim, estamos tratando com lugares, como Uruguaiana e Paso de Los Libres e Santana do Livramento e Rivera, e espaços fronteiriços, que podem ser denominados pelos binômios Uruguaiana-Libres e Livramento-Rivera.

Outra questão que se impõe está ligada ao fato de nos municípios analisados, a referencialidade ao local ser forte, mas gerar, freqüentemente, uma relação marcante - ou as vezes confusa - no que diz respeito à concepção de internacional. Neste sentido, há um conflito latente à atribuição de identidade nacional, visto que tal questão é formada e transformada no interior da representação. Se levarmos em conta que os povos que habitam cada um dos lados da linha de fronteira fazem parte de uma nação distinta e que "nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural" (HALL, 1999, p. 49), entenderemos que existe, nos casos citados, a possibilidade de um espaço de tensão. Ou talvez, pelo contrário, a rivalidade seja trabalhada pelos cidadãos de fronteira de modo diferenciado, aspecto este que poderá ser esclarecido no decorrer do estudo.

Em se tratando dos conceitos de identidade nacional e identidade cultural, cabe ressaltar que, acompanhando o posicionamento defendido por Jacks (1999), nem sempre ambas são a mesma coisa, embora tenham como sustentação a memória. Pode-se dizer, ainda, que "toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença", mas, além disso, ela possui também outra dimensão, que é interna. E mais, "Dizer que somos diferentes não basta, é necessário mostrar em que nos diferenciamos" (ORTIZ, 1986, p. 08-09).

O que ocorre nos espaços fronteiriços, - como veremos mais adiante -, é a existência de uma identidade nacional, acionada por vezes, quando a relação se dá com o morador argentino ou o uruguaio, ou, ainda, de outra nacionalidade como a palestina, de presença marcante nos espaços pesquisados. Neste caso, a especificidade a ser ressaltada se relaciona ao país de origem.

Por outro lado, há momentos em que surge uma identidade cultural fronteiriça, tornando-se a de maior relevância, distinguindo o habitante do local - sem importar que esse seja brasileiro, uruguaio, argentino etc. - dos "forasteiros", isto é, daqueles que desconhecem as singularidades - dificuldades, necessidades, carências...- dos grupos que povoaram as bordas dos países envolvidos no contexto. Como ressalta Canclini:

Tener una identidad sería, ante todo, tener un país, una ciudad, un barrio, una entidad donde todo lo compartido por los que habitan ese lugar se vuelve idéntico o intercambiable. En eses territorios la identidad se pone en escena, se celebra en las fiestas y se dramatiza también en los rituales cotidianos.

Quienes no comparten constantemente ese territorio, ni lo habitan, ni tiene por tanto los mismos objetos y símbolos, los mismos rituales y costumbres, son los otros, los diferentes. Los que tienen otro escenario y una obra distinta para representar (CANCLINI, 1990, p. 177-178, grifo do autor).

No caso dos uruguaianenses-libreños ou dos santanenses-riverenses3, quando é necessário se fortalecer como fronteiriço, o que fica em destaque é a identidade cultural local em detrimento da nacional. É importante ressaltar que, para cada um destes dois grupos, as distinções também existem, pois em um dos espaços a ligação se dá entre Brasil-Argentina e em outro entre Brasil-Uruguai4. Nem tudo que se passa ou que serve para um dos espaços se dá da mesma forma no outro, até mesmo porque, como enfatiza Ortiz (1986, p. 09), toda identidade é uma construção simbólica, também influenciada por elementos que a transformam em identidade plural, construída de modo particular por diferentes grupos sociais e com relação estreita com o momento histórico vivenciado. Ou seja, as marcas sociais de uma e outra realidade, embora muito semelhantes, estão carregadas de elementos particulares a cada uma delas.

Percebe-se que a relação entre os "hermanos do Prata", homogênea em alguns aspectos, fica repleta de nuanças, quando os elementos envolvidos fazem parte de um ou de outro contexto. Isto é, não podemos dizer que a interação entre uruguaianenses-libreños é a mesma do que a dos santanenses-riverenses, os mecanismos acionados para possibilitar a convivência são diferenciados5.

Neste aspecto, Grimson6 se preocupa em vincular em duas dimensões a questão da identidade e da cultura: uma ligada ao sentido de pertencimento, como referência identitária. Outra à noção de uma organização específica de heterogeneidade e desigualdade, em uma determinada sociedade. O autor ressalta que:

Ninguno grupo y ninguna persona tienen una identidad, ninguno de ellos tienen alguna esencia. Las personas y los grupos se identifican de una maneira o de otra en contextos históricos específicos y en marco de relaciones sociales localizadas. Por eso, lo primeiro elemento de toda identificación és su caráter relacional: a lo mismo tiempo que establece un 'nuestro' define un 'ellos' (GRIMSON, 2000, p. 29).

Ao analisar as relações fronteiriças, ocorre que se deve levar em conta os pactos internos firmados entre os grupos envolvidos. Se em um determinado momento é conveniente deixar a relação fraterna se sobressair, em outros, passa a ser conveniente manter ou "alimentar" um espírito de rivalidade e de tensão. Estes movimentos podem, em grande parte, proteger as equipes de representação, resguardando os habitantes locais dos "desconhecidos"7, acionando técnicas que "salvem o espetáculo", como sugere Goffman (1985), fazendo com que a cultura fronteiriça assuma um caráter integrador, como será oportunamente resgatado quando da análise do material coletado.

Neste caso, são acionadas "práticas de significação que produzem significados envolvendo relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído' (WOODWARD, 2000, p. 18), poder esse exercido pelos membros dos grupos predominantes no espaço local, aqui constituído pelos fronteiriços. Ao mesmo tempo, também fica claro que o estabelecimento constante da relação com o outro, passa a ser condição fundamental para a possibilidade do eu dentro de seu meio de existência sem o qual não teria como ser.

Estamos, numa relação ambivalente, diante de um desconhecido, hesitando entre simpatia e medo, não sabendo se ele se mostrará amigo ou inimigo. Para pacificar a relação e ir na direção da amizade, trocamos com ele gestos de cortesia. Mas estamos prontos, em caso de hostilidade, a fugir, atacar, defender-nos.(...) o outro já encontra-se no âmago do sujeito. (...) o outro é uma necessidade interna (MORIN, 2002, p. 77).

E uma das formas onde se processa a afirmação da identidade, onde ela se fortalece e se recria, é a comunicação, campo de encontro e conflito "con el/lo otro" como ressalta Martín-Barbero (1990). Um dos instrumentos onde suas manifestações ficam documentadas é a mídia, entre elas o jornal local.

Entretanto, para chegarmos até este instrumento e compreender seus procedimentos e a influência que seus produtos possam vir a surtir, temos que passar por outras questões que envolvem, neste caso, os intercâmbios em regiões de fronteiras nacionais, em especial os que dizem respeito ao entrelaçamento entre comunicação e cultura, e desta imbricada com ideologia.

Assim, acreditamos que, para realizar tal análise, é necessário construir um caminho capaz de dar conta da realidade existente8. Neste sentido, iniciaremos a próxima parte do estudo retomando os posicionamentos aos quais nos filiamos. Passamos então a definir alguns referenciais para o estudo, entre eles os que estão ligados aos conceitos de cultura e ideologia.

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1.2 Cultura, ideologia e meios de comunicação

Um dos autores que reflete a respeito deste entrelaçamento é Néstor García Canclini. De acordo com o autor:

a teoria da cultura coincide em parte com a teoria da ideologia9, (...) e que a primeira, desenvolvida principalmente fora do marxismo, necessita da segunda para poder vincular os processos culturais com suas condições sociais de produção.(...) A cultura não representa somente a sociedade; também cumpre, dentro das necessidades de produção de sentido, a função de reelaborar as estruturas sociais e imaginar novas (CANCLINI, 1995, p. 23).

Parece-nos importante estabelecer, aqui, a qual o conceito de cultura a que se remete Canclini, ou seja, a "produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para compreender, reproduzir ou transformar o sistema social (...) lugar onde se representa nos sujeitos o que sucede na sociedade; e também como instrumento para a reprodução do sistema social" (CANCLINI, 1995, p. 60). Por meio da cultura, os indivíduos, compreendem, conhecem e reproduzem o sistema social, bem como elaboram alternativas, na busca de uma dimensão transformadora.

Realizar um exercício interpretativo capaz de auxiliar na compreensão de tudo o que está envolvido no componente cultura é algo bastante complexo e tal exercício, não raramente, leva a um subjetivismo que deve ser combatido. Para que se possa conseguir avanços, é importante manter o exame das formas simbólicas tão estreitamente ligadas quanto possível "aos acontecimentos sociais e ocasiões concretas, o mundo público da vida comum, e organizá-lo de tal forma que as conexões entre as formulações teóricas e as interpretações descritivas não sejam obscurecidas" (GEERTZ, 1989, p. 40).

A partir das constatações acima, podemos dizer que a ação ideológica mais importante para constituir o poder simbólico se dá nas relações de sentido, inconscientes na maioria das vezes, que se organizam no habitus10 e que só podemos conhecer através deste. John B. Thompson (1995) elabora uma concepção de cultura que dá ênfase à constituição significativa e a contextualização social das formas simbólicas11. Ele segue as indicações que vêem a análise cultural como sendo o estudo do caráter simbólico da vida social. Defende que esta orientação deve ser articulada com uma abordagem das maneiras pelas quais as formas simbólicas estão incorporadas em contextos sociais estruturados. Assim, "os fenômenos culturais podem ser entendidos como formas simbólicas em contextos estruturados; e a análise cultural pode ser pensada como o estudo da constituição significativa e da contextualização social das formas simbólicas" (THOMPSON, 1995, p.166).

Ainda conforme Thompson tal abordagem nos oferece um referencial para análise da emergência da comunicação de massa, entendida como o surgimento, na Europa do final do século XV e início do XVI, de um conjunto de instituições ligadas à valoração econômica de formas simbólicas e a sua ampla circulação no tempo e no espaço. O acelerado desenvolvimento destas instituições e a exploração de um novo instrumental técnico foram determinantes para que a produção e a circulação das formas simbólicas fossem, de maneira crescente, mediadas por instituições e mecanismos de comunicação de massa. É um processo que perdura até os dias de hoje, estabelecendo mudanças no mundo em que vivemos.

Corroborando com esta posição podemos nos remeter à reflexão proposta por Guareschi, segundo a qual o ser humano "se forma, historicamente, se estrutura a partir das relações que vai colocando. E a comunicação é uma relação, hoje certamente uma das relações mais persuasivas e abrangentes" (1991, p. 20).

A comunicação atua como mediadora das relações sociais, inserida em contextos e através de instrumentos e formas simbólicas, estabelecendo e mantendo relações, por vezes, desiguais. Sendo assim, uma vez mais, a questão ideológica faz-se presente. É sabido que - da mesma forma que ocorre com o conceito de cultura - muitas são as definições para ideologia, mas, para que se mantenha a linha de raciocínio aqui estabelecida, elegemos as apresentadas por autores como Bourdieu, que substituiu a conceituação de ideologia por conceitos de 'dominação simbólica', 'potência simbólica' ou 'violência simbólica', na intenção de controlar alguns dos usos ou abusos a que ela fica sujeita:

em termos de dominação simbólica, a resistência é muito mais difícil, pois é algo que se absorve como o ar, algo pelo qual o sujeito não se sente pressionado; está em toda parte e em lugar nenhum, e é muito difícil escapar dela. Os trabalhadores vivem sob esse tipo de pressão invisível e, assim, adaptam-se muito mais à sua situação do que podemos supor. Modificar isso é muito mais difícil, especialmente hoje em dia. Com o mecanismo da violência simbólica, a dominação tende a assumir a forma de um meio de opressão mais eficaz e, nesse sentido, mais brutal. Pense nas sociedades contemporâneas em que a violência tornou-se branda, invisível (BOURDIEU, 1996, p. 270).

Em La ideología del poder y el poder de la ideología, Therborn analisa a expressão ideologia de modo mais abrangente, fazendo referência ao aspecto da condição humana, sobre a qual os seres humanos vivem suas vidas como atores conscientes em um mundo que cada um deles compreende em vários graus. Para ele, a ideologia é um meio através do qual opera esta consciência e esta significação. Nessa concepção, o teórico inclui tanto as noções trazidas pela "experiência" cotidiana, como as elaboradas doutrinas intelectuais, tanto a "consciência" dos atores sociais, como os sistemas de pensamento e os discursos institucionalizados de uma determinada sociedade. Referindo-se à relação entre cultura e ideologia, o autor propõe que:

o conceito de cultura pode tornar-se útil ao lado de uma ampla definição da ideologia. Pode empregar-se, por exemplo, como abreviatura do conjunto de atividades cotidianas e ideologias de um grupo ou classe determinados, ou como um conceito mais geral e amplo que englobe a ideologia, a ciência, a arte e, possivelmente, outras práticas estudadas desde o ponto de vista de sua produção de significado (THERBORN, 1989, p. 6-7).

Essa avaliação permite afirmar que, para compreendermos como funcionam as ideologias em uma determinada sociedade, é necessário que as observemos não como posições ou textos, mas como processos sociais em curso. Assim, as ideologias não funcionam como idéias ou intimidações imateriais. Elas são sempre "produzidas, transmitidas e recebidas em situações sociais concretas, materialmente circunstanciais, e através de meios e práticas de comunicação especiais, cuja especificidade material pesa sobre a eficácia da ideologia em questão". (THERBORN, 1989, p. 63-65).

Interessa-nos, então, verificar como a ideologia se manifesta, quais as formas que são encontradas para obter os resultados a que se propõe. Neste sentido, Guareschi (1982), posiciona-se dizendo que a ideologia consiste num sistema de representações vinculado às experiências vivenciais cotidianas dos homens. Ela traz consigo os hábitos, desejos, reflexos dos indivíduos. Muitas pessoas, na maioria das vezes, vivem suas vidas sem nem ao menos se darem conta do que está por trás destas representações. Avançando neste posicionamento e com relação às dimensões que podem ser enfocadas para a compreensão das questões ideológicas entrelaçadas com o cotidiano e a cultura, Guareschi (1996) aponta para a dimensão onde a ideologia está materializada, na estrutura concreta, na idéia, na forma simbólica. Ela é vista como uma prática, ou o modo como as formas simbólicas servem para criar e manter relações de dominação.

Thompson propõe-se organizar uma discussão sobre a natureza e o papel da ideologia, sua relação com o poder, a linguagem e com o contexto social e as maneiras como essa ideologia pode ser analisada e interpretada, em casos específicos, dentro de um sistemático referencial teórico12. Dá ênfase às maneiras, aos processos sociais dentro dos quais, e pelos quais, as formas simbólicas permeiam o mundo social. Enfatiza o desenvolvimento dos meios de comunicação social, considerados por ele como a característica da cultura moderna13 e uma dimensão central das sociedades modernas.

* * *

As considerações feitas nestes primeiros itens buscam constituir uma base inicial para investigar quais são as práticas comunicacionais e os processos midiáticos desenvolvidos em nível local, em uma comunidade distinta, a fronteiriça. A preocupação ao apresentar tais referências é de poder identificar que mecanismos são acionados pelos grupos do lugar - incluindo nestes a própria mídia - que tornam viável a resolução das questões cotidianas desses espaços.

A partir deste balizamento teórico, e dos demais autores que serão apresentados no decorrer do texto, tornou-se possível analisar como a fronteira é vista, vivida e externada por seus habitantes nas suas falas, nos seus textos. Ela constitui-se em um fenômeno geográfico, político e social que afeta e influencia as relações estabelecidas num espaço em que o local e o internacional caminham lado a lado. É neste contexto que os sentimentos e as manifestações de colaboração e interação alternam-se com os de tensão e conflito, comportamento visível tanto nos processos sociais ali deflagrados como nos procedimentos adotados pelos jornais impressos, produzidos localmente.

1 A criação formal do MERCOSUL ocorreu em 1991, com o Tratado de Assunção. O chamado Período de Transição estendeu-se até 1994 e teve como característica o desenvolvimento do programa de desgravação tarifária e a negociação dos instrumentos de política comercial comum. Em janeiro de 1995, iniciou-se uma nova fase, qualificada como Período de Consolidação da União Aduaneira (FLORÊNCIO; ARAÚJO, 1995).
2 Por problemas internos, no decorrer do ano de 2000 o governo federal argentino designou um interventor para governar Corrientes, emersa em uma séria crise econômica.
3 Neste estudo, esta expressão é empregada para salientar a interação existente entre os cidadãos locais que pertencem aos dois espaços analisados, destacando a utilização da grafia correta de acordo com a denominação dada aos representantes de cada uma das cidades
4 Quando a intenção é de reforçar o ponto de encontro territorial entre os dois países, utiliza-se o hífen, indicando a idéia de ligação; o mesmo procedimento será adotado quando tratarmos do Brasil e da Argentina.
5 Há nesta convivência uma relação entre a necessidade formal do encontro e o aspecto aleatório do seu conteúdo que leva o usuário a manter-se em uma posição defensiva, no interior de códigos sociais precisos, centrados em torno do "reconhecimento". Todo indivíduo torna-se obrigado a levar em conta o seu meio social, pois somente desta forma tem condições de se inserir nele para sobreviver ali (CERTEAU, 1994, p. 46-47).
6 O antropólogo argentino vem trabalhando nas interfaces da cultura e comunicação, explorando ambientes fronteiriços onde comunidades de identidades distintas estabelecem relações.
7 Como sugerem Berger e Luckmann: "os estranhos têm de ser impedidos de entrar, e mesmo conservados na ignorância da existência do subuniverso ... os íntimos, por outro lado, têm de ser mantidos dentro". (1985, p. 120-121).
8 Realizamos outros estudos vinculando a análise da mídia à cultura e à ideologia onde estas se apresentam imbricadas, considerando o contexto onde são produzidas, transmitidas e recebidas de modo a tratar a comunicação midiática como processo. Em cada situação, foi preciso mapear as realidades onde as mídias estavam inseridas (PEREIRA JR; MÜLLER, 2000) (MÜLLER, 1997).
9 Canclini destaca que a ideologia entendida como cultura e não como mera distorção do real, é vista hoje como um componente indispensável para a reprodução material e simbólica das sociedades para produzir o consenso e a coesão social (1995, p. 22).
10 Para Bourdieu (1996), habitus significa um complexo sistema de disposições de esquemas básicos de percepção, pensamento e ação.
11 Thompson entende formas simbólicas como um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos que são reproduzidos por sujeitos, reconhecidos por eles e outros como constructos significativos.
12 Para o autor, ideologia é o "o sentido mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas" (1995, p. 79).
13 Ao relacionar cultura e mídia nas sociedades modernas, Ortiz destaca que a mídia atua sob duas lógicas: uma de cultura e outra de mercado. Ou seja, encerra um valor de troca intrínseco a sua manifestação, produto da sociedade moderna (1994 b).

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